Nem bem começa a campanha eleitoral e vejo
dezenas de fotos de candidatos, e dezenas de números e de slogans de
candidatos. No deslocamento entre a minha casa e o meu
trabalho vejo candidatos nos carros e nos outdoors: candidatos
sorridentes, candidatos carrancudos,
candidatos sozinhos, candidatos acompanhados. Candidatos, candidatos,
candidatos. E como são grosseiros e
indecentes os candidatos, e como suas expressões são torpes,
e como seus olhos, e seus rostos escanhoados, e seus cavanhaques e
barbas, e seus narizes, e seus sorrisos são obscenos!
E como são feios os candidatos! Como são feios todos eles! E como
são vazios seus slogans! E como são risíveis e indignos e
mentirosos seus slogans! E como falam com desfaçatez, com cinismo e
com desvergonha em progresso, em honestidade, em compromisso, em
educação, em segurança, em saúde!... Arre, como está suja a
cidade! Mais suja que o normal. Nossa cidade já de si tão suja, tão
suja, tão suja.
sexta-feira, 17 de agosto de 2012
quarta-feira, 15 de agosto de 2012
O QUARTINHO DA CAVEIRA
Nem
lembro exatamente por que nos ameaçavam, que malfeitorias cometíamos
ou podíamos cometer. Creio que nos ameaçavam porque estudávamos
pouco, ou porque brigávamos, ou porque demorávamos demais no
recreio. (A nossa vida era uma vida de medos, de ameaças pendentes
de execução.) Sei, porém, que para alguns de nós – os mais
inocentes, pelo menos –, as ameças surtiam efeito: não brigávamos
nem na sala nem no recreio (mas brigávamos na porta do colégio),
respeitávamos todos os horários e sobretudo estudávamos como
loucos: honrávamos, enfim, um nebuloso código escolar, cheio de
regras invisíveis. Para os que não o fizessem, ei-lo, o pior dos
castigos (havia outros, menos terríficos mas mais dolorosos, que às
vezes ainda assim preferíamos: a bofetada pura e simples ou a temida
palmatória), ei-lo, como eu dizia, o pior dos castigos: o quartinho
da caveira. A bem da verdade, não era exatamente um quartinho, mas
sua representação: uma porta, pintada de verde, que ninguém, pelo
que me consta, nunca tinha visto aberta (só a tinham visto aberta os
infelizes engolidos por aquela boca escura e sem dentes, isto é, os
infelizes que tinham sido jogados no quartinho, e que, dizia-se,
saíam contando horrores da experiência). E nós, do pátio interno,
nós a víamos, fechada e ameaçadora; e a víamos também quando
passávamos por ela, em direção às nossas salas; e a víamos, a
depender da posição, através das janelas, enquanto assistíamos às
aulas. No quartinho, claro, trancavam os meninos desobedientes, e
dele diziam que era estreito e escuro. E que tinha uma caveira,
evidentemente. Mas por que uma caveira? Que sádico educador ideara
tão cruel instrumento de castigo? Ninguém sabia. Hoje, ao recordar
o período, acho provável que um dia alguém tenha visto a porta
entreaberta e, dentro do quartinho, pendurado como um paletó velho,
um esqueleto inofensivo, desses de plástico, desses que se usam em
aulas de anatomia. Talvez esse alguém, algum colega mais
imaginativo, tenha espalhado a notícia da caveira, que virou lenda e
atravessou duas ou três gerações. O fato é que deixei o colégio
sem saber se realmente havia uma caveira atrás da porta verde. Só
depois que cresci (não sei quanto tempo depois) foi que me disseram
que o quartinho da caveira nunca tinha abrigado caveira nenhuma (a
não ser, quem sabe, a eventual caveira de plástico, solitária e
desvalida) e sim os instrumentos da banda da escola, por sinal uma
das melhores da cidade. Surdos, pratos, triângulos, bumbos – isso
era tudo o que havia dentro do quartinho. Mas por que ninguém tratou
de pôr cobro à ameaça, ao medo constante? Não bastavam os
safanões e a palmatória? Por que nenhum dos meus colegas – vários
deles tocavam na banda e sem dúvida tinham visto os instrumentos lá
dentro do quarto – nunca disse a verdade? Talvez agora, à
distância, eu exagere o efeito da caveira: não creio que ela tenha
chegado a me tirar o sono. Mas ela sem dúvida nos inquietava (isto
é, sua mera possibilidade inquietava-nos) quando do pátio, ou
através das janelas das nossas salas, mirávamos a medo aquela boca
que a qualquer momento podia abrir-se e nos tragar.
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
UMA FAMÍLIA
Hora
do almoço, num restaurante. Os dois moleques chegam contrariados,
talvez porque os pais não lhes satisfizeram os gostos. O galeguinho,
que está de costas para mim, parece ser bem comportado: vejo-o mexer
quietamente na orelha direita, como se estivesse distraído. Já o
moreninho, que vejo de frente, faz caras e bocas de malandro, e
vai-não-vem debruça-se sobre a mesa para falar com o irmão em tom
conspiratório. O pai, alto e barrigudo, moreno, barba de três dias,
calça social e chinelos, foi fazer os pratos com a mãe; antes
mandou os moleques guardarem o lugar: diante deles, sobre a mesa, a
bolsa da mãe, uma bolsa grande e mole, parece um animal morto. Os
pais voltam com os pratos e todos começam a comer. A mãe é morena,
tem os olhos grandes e expressivos, o nariz afilado; veste calça
jeans e camiseta (e logo vejo que não é mãe: não usa aliança em
nenhuma das mãos e é jovem e bonita, jovem demais para ser mãe dos
moleques) e gosta de tatuagens: tem estrelas no ombro esquerdo e nos
pés (por sob a mesa vejo seus belos pés calçados em escarpins). O
pai é autoritário: resmunga, diz aos meninos o que devem e o que
não devem fazer (ouvi-o dizer para o galeguinho, rosnando: “Tire
os pés da cadeira!) e mantém um ar distante (os filhos, penso, são
para ele duas coisas, duas sacolas que ele colocou nas cadeiras
enquanto come). A madrasta (feio nome para uma moça tão bonita),
por sua vez, parece amiga dos dois: conversa e sorri. Que fazem
aqui?, me pergunto. De onde vêm? Que foi feito da mãe dos moleques?
Será que os moleques gostam do pai? Será que respeitam a madrasta?
Continuo observando-os, entre uma garfada e outra. A madrasta parece
satisfeita: vejo-a piscar para o pai, não consigo imaginar por quê.
Pouso os olhos nele: fixo-me em suas sandálias gastas, em seus
calcanhares sujos; examino sua cara severa, sua barba negra, seus
olhos duros... Que motivos ela tem para estar satisfeita? O moreninho
come com preguiça, a cabeça apoiada na mão direita; o galeguinho
pensa em colocar os pés na cadeira e súbito recorda a severa
recomendação do pai. Termino de comer. Preciso voltar ao trabalho.
Levanto-me e me afasto devagar. Deixo-os para trás. Provavelmente
não tornarei a vê-los. A tarde é ensolarada, uma agradável tarde
de agosto. Há uma leve melancolia nessa tarde clara. Provavelmente
não tornarei a vê-los.
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
SANTÍSSIMA PACIÊNCIA
Como hoje não é dia de nada (pelo menos de
acordo com o site que acabei de consultar; amanhã é o dia do
tintureiro; ontem foi o dia do selo e da amamentação), por que não
instituir o dia 2 de agosto como o dia da paciência? Eu
gostaria de ver na internet notícias (reportagens, artigos, sei lá)
com o seguinte teor: “Hoje é o dia da paciência. Veja o que você
pode fazer para ter ainda mais,” ou então “Cinco especialistas
dão dicas de como aperfeiçoar a paciência”. Porque todo dia (ou
quase) é dia de alguma coisa. A coisa chegou a tal ponto de
despropósito que não me espantaria que houvesse o dia do pneu, o
dia do cartaz, o dia do vaso sanitário, o dia do alfinete, o dia do
virabrequim (as pessoas não sabem como o virabrequim é
importante!), sem falar nos dias mais, digamos, abstratos: o dia do
sentimento (só valem os sentimentos bons, é claro), o dia do
suspiro (de alívio, bem entendido), o dia da contemplação (mas não
no trabalho), o dia do sonho (“Especialistas ensinam como sonhar”),
o dia do desapego (“Veja aqui como fazer para desapegar-se com
eficiência”). O absurdo de alguns desses dias (pelo menos para
mim, que sou ranzinza) chega a ser constrangedor: no dia do homem,
que descobri existir este ano (como se fosse necessário um dia do
homem, coitadinho: se a mulher tem um, por que o homem não pode
ter?), no dia do homem, eu dizia, vi muito homem se cumprimentando e,
o que é pior, vi muita mulher cumprimentando homem. E pior ainda:
vi, não sem estupor, algumas pessoas virem me cumprimentar. Menos
mal que foram poucas, pois nunca achei que merecesse ser
cumprimentado por algo tão natural, tão genético, tão biológico
(e, como tal, não escolhido) como o meu gênero (o mesmo raciocínio
vale, aliás, para as mulheres, me perdoem as que fazem questão). A
coisa é de um enorme absurdo, como já disse, mas também de uma
hipocrisia deslavada: existe o dia da mulher e o dia do homem. Mas e
o dia do homossexual? E o do transsexual? Bom, vi na internet que é
o dia 28 de junho (parece que todos os grupos reunidos sob a sigla
LGBT, se não me engano, têm direito a apenas um dia, o dia do
Orgulho Gay). Ocorre, porém, que a data ainda não foi oficializada.
Pelo menos não a vi em nenhuma das listas que consultei. Será que
algum movimento subterrâneo impede a oficialização? Por falar
nisso, quem oficializa as datas? Quais são as verdadeiramente
oficiais e as meramente simbólicas? Cada grupo cria a sua e se
encarrega de divulgá-la? Em sendo assim, eu e eu mesmo instituo hoje
a minha: a partir de agora, oficialmente, o dia 2 de agosto é o dia
da paciência. Pois é preciso ter muita, santíssima paciência,
para aguentar estas bobagens.
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