Ontem, lendo o Livro de Crônicas do Lobo Antunes, dei com a
seguinte frase: "O Nicolau era ruivo: existe sempre um ruivo em
cada turma". E imediatamente me lembrei do João, que era ruivo
e estudou comigo na quinta ou na sexta série (na época se dizia
série e não ano) da Escola Estadual Adriano Jorge. Pois bem. O
João, demais de ruivo (ou, pensando bem, galego) era silencioso e
modesto como costumem ser as pessoas do interior. Silencioso e
modesto, do tipo que sorri meio de lado, como que envergonhado, do
tipo que fala olhando para baixo. O João, se pudesse, passaria
despercebido. Que o deixassem quieto, esse era seu sonho. Mas os
sonhos ou não se realizam ou nunca duram, esta é sua sina, e
aconteceu que um dia a professora pediu ao João que fizesse uma
leitura em voz alta para toda a classe. Já aí há complicação,
sem dúvida. Esse negócio de se expor não é boa coisa. Mas o João
começou bem a leitura, e eu notei que a professora balançava a
cabeça para cima e para baixo, discretamente, num gesto de
aprovação. E então o João se deparou com a palavra flor no
meio do texto. Sem peias, sem duvidar de que estava fazendo o certo,
disse: fror. A professora congelou e nós também, enquanto o
João seguia adiante. Um momento, João, disse a professora. Leia a
última frase, por favor. E o João leu a frase de novo e no meio dela disse
novamente: fror. A professora não o deixou seguir adiante: É flor,
João, flor. E ele, hesitante, como se não estivesse compreendendo:
fror, fror. É flor, João, o certo é flor. E ele, como se se
perguntasse o que estava fazendo de errado: fror, professora, fror. E
nós caímos na gargalhada. Repita comigo, João: fu-lôr. E ele:
fu-ror. E nós morríamos de rir. Não sabíamos então, nem a
professora sabia (e quase ninguém sabe hoje), que as consoantes /l/
e /r/, chamadas de consoantes líquidas, são parentas próximas do
ponto de vista articulatório. No imprescindível Preconceito
linguístico: o que é, como se faz, Marcos Bagno explica que tal
circunstância faz com que, “na história de muitas línguas [e na
do nosso português] elas se substituam umas às outras
indiferentemente”. O velho Camões, em seu Os Lusíadas,
por exemplo, escrevia ingrês, frauta e pranta. Se a gente for procurar a
etimologia destas palavras no Houaiss vai ver que frauta está certo,
e pranta também, e também frecha, e uma porção de outras
palavras. Mesmo o ingrês aparece lá, com a ressalva de que se trata
de uma forma antiga. E a gente ria do João, e a professora tentava
consertar sua pronúncia. Compreensível a atitude da professora: não
se pode deixar que as crianças saiam por aí falando coisas
“erradas”. O que me dá pena é que a gente não tenha podido
compreender (e ainda hoje quase ninguém compreende, e muitos fazem questão de que não se compreenda) que o João, quando falava fror, estava apenas
reproduzindo um padrão linguístico antigo, que seus pais, avós e
bisavós também já vinham reproduzindo. Não estava errado, o João,
que terminou concluindo a leitura aos trancos e barrancos. Os que ríamos dele não tínhamos como compreender que o pedaço de sociedade em que vivíamos era
diferente do pedaço de sociedade em que ele vivia. Erroneamente julgávamo-nos superiores a ele e sentíamos pena de sua
ignorância (que, a partir de então, o João tentou superar para poder
ficar um pouquinho mais parecido com a gente). Mal sabia o João que
era uma parte viva da nossa história linguística, e que também por isso (e não
apenas por isso), merecia o nosso mais sincero respeito.
sexta-feira, 27 de abril de 2012
quinta-feira, 19 de abril de 2012
PARTICIPAR DESTE SITE
“Não
entro para clubes que me aceitem como sócio.” A
frase é de Groucho Marx. Sempre que as pessoas me elogiam ou sempre
que, mesmo de maneira indireta e sem intenção deliberada, as
pessoas me fazem um cumprimento, lembro da frase do Groucho Marx, nem
sei exatamente a que propósito. Nessas horas ocorre-me lembrar
também, mais perversamente, de um episódio contado por Graciliano
Ramos em Infância. Duas moças, não lembro se irmãs,
elogiaram o paletó cor de macaco que o então moleque Graciliano
vestia. “Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de
qualidade superior, o feitio admirável. Envaideci-me: nunca havia
reparado em tais vantagens.” O moleque logo desconfiou: “Mas os
gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que
elas zombavam, e não me susceptibilizei. Longe disso: julguei
curiosa aquela maneira de falar pelo avesso, diferente das grosserias
a que me habituara.” A conclusão vem ao final do capítulo:
“Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado,
avaliei o forro, as dobras e os pospontos das minhas ações cor de
macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem
tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras,
e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco.” Pois
hoje, ao entrar neste blog, por mera curiosidade, uma curiosidade vã
e inútil (às vezes nem tanto, pois sempre posso consertar uma
coisinha aqui e outra ali), descubro que tenho um seguidor. Sim, um
único seguidor. Vejo o número um, essa coisa redonda, primordial.
Deve ser, pensei
imediatamente, alguém que eu
conheço. Para três ou quatro pessoas contei que mantenho
este blog amorfo, sem temática pré-definida. Deve ser um desses.
Fui ver e, incrível, não é ninguém que eu conheça. Ei-la, no
canto direito, a minha primeira e quiça última seguidora. E pensei:
Vai ver se enganou. Entrou no blog enquanto fazia uma pesquisa e, sem
querer, clicou no link PARTICIPAR DESTE SITE. Quando der pelo
erro, apostei, volta lá e desmarca a opção. Eis que ergo o meu
paletó cor de macaco à altura dos olhos e o examino bem: é
exatamente isto, penso comigo mesmo, foi um engano.
quinta-feira, 12 de abril de 2012
MUNDO PEQUENO
Não
importa o que você fez nem se você foi grande ou não. Ser
lembrado, lembrado de verdade, é coisa para muito poucos. E se você
é grande (isto é uma pergunta), e se você tem potencial para ser
grande não apenas no seu círculo, mas em outros e mais amplos
círculos? E se esse potencial de amplitude não se realiza? Eis
aqui, falando para um público interessado, um grande homem.
Grande cientista do direito, grande jurista (foi assim que o
apresentaram) e sobretudo grande humanista. Velho, diabético, meio
surdo. Digno, sem dúvida. Grande cabeleira branca, modos educados,
voz professoral. Ei-lo aqui, falando para um público interessado. E ninguém, absolutamente ninguém o conhece, a não
ser os seus pares. Seus colegas de trabalho o conhecem. Alguns juízes
o conhecem. Angariou também, ao longo da vida digna, alguns inimigos
que o conhecem bem – e o detestam. Fora do próprio Estado, porém,
ninguém o conhece. Fora, aliás, do círculo jurídico de seu
Estado, ninguém o conhece. E é grande, e é humanista. Uma vocação
frustrada? Não. O mundo é muito pequeno para o número de grandes
homens que o habitam. Morrerá sem que o mundo o conheça, essa
sumidade da ciência jurídica, esse grande humanista, sem dúvida
digno e honrado e honesto, aqui homenageado, aqui, nesta salinha
pequena, com pouco mais de cinquenta pessoas.
segunda-feira, 9 de abril de 2012
SINA
Desta
história sei pouco, pois a ouvi indiretamente, mas tive o prazer de
conhecer sua protagonista durante um final de semana. Me disseram que
de início ela morava com o pai, que lhe dava surras inexplicáveis. (Da mãe, ela havia dito, nunca
tinha apanhado; o problema era que a mãe levava estranhos para casa: Meu destino ia ser muito pior, dissera, ao referir-se à possibilidade de ter ido morar com a mãe.) Certo
dia, num de seus inexplicáveis acessos de raiva, o pai lhe deu uma surra com uma tábua. Nunca sangrou
tanto na vida. As marcas
estavam lá, nas costas, para quem quisesse ver. Mas parece que os sofrimentos não deixaram mossa. Ela fala com uma
honestidade despretensiosa. Seu modo é modesto e humilde; sua expressão é
de índia ingênua. Pequenininha, muito pequena para os seus treze
anos, tudo nela é suave e brando e educado. E, não posso esquecer,
sua alegria espontânea irrompe de repente em risadas infantis que
desarmam quem as ouve. Parece, não estou bem certo quanto a isso,
que depois foi levada para morar com uma tia. Esta também alimentava
instintos sádicos e a surrava com incompreensível prazer. Ela
simplesmente não entendia. Por que aquela violência gratuita? Por
que aquelas surras absurdas? Então, por uma benéfica conjunção de fatores,
chegara à família que a acolhera. Parece que a tia se cansara dela,
não sei, e a entregara para cuidar de uma senhora idosa. Mas antes tinha que sofrer mais um pouco. Contaram-me que o pai ou o marido
da tia a tinha molestado. Que sina. No domingo, pouco antes de me despedir
dela (não nos veremos durante muito tempo) eu a olhei não com
outros olhos, que não é possível, mas sob nova luz: aquela plácida
expressão de bem-estar, aquele riso infantil e puro, aqueles olhos
vivos e brilhantes, tudo nela me surpreendia. Eu me perguntava como
era possível que ela não amaldiçoasse a humanidade inteira e, em
especial, os homens, ou como não tinha ganas de enlouquecer
espontaneamente, de dor e de raiva, ou como podia sorrir e
simplesmente viver como se nada daquilo pudesse afetar seu espírito
benfazejo. Com que coisas sonhava à noite?, eu me perguntava. Quando
me despedi, disse sinceramente (como tão poucas vezes já disse) que
tinha sido um prazer conhecê-la. E emendei um Obrigado ainda mais sincero (porque ela
nos ajudara de um modo que não vem ao caso relatar). Ela sorriu acanhadamente, olhando para baixo, e disse De
nada. Parecia vivamente surpresa
de que pudessem agradecer-lhe por alguma coisa.
quinta-feira, 5 de abril de 2012
O LEGADO DA NOSSA FRAGILIDADE
Eu estava lanchando quando uma mulher de seus trinta e poucos anos aproximou-se e sentou-se ao balcão. Não pude deixar de observá-la, pois veio em minha direção, como se fosse falar comigo. Usava um vestido estampado, simples, e vestia meias de compressão. Trazia uma bolsa vermelha a tiracolo, tinha os cabelos presos num coque. Não era bonita nem feia. Sentou-se, pediu um suco de laranja e um salgado. Só. E ali, ao observá-la, senti uma ligeira inquietação. Não, inquietação não é palavra adequada. Mas não sei, afinal, qual é a palavra adequada. O fato é que, observando-a, achei-a frágil, sem que para isso houvesse nenhum motivo particular. Teriam sido as meias de compressão? Teriam sido os braços magros, fininhos, que notei quando chegou mais perto? Teria sido o rosto com marcas de espinhas antigas, que observei com o rabo do olho? E súbito compreendi: eu havia reconhecido uma verdade. Ela era, sim, frágil. E o cara ao lado dela, que chegou com o filho, um cara gordo, de óculos, careca, também era frágil. Olhei para mim mesmo enquanto mastigava minha empada e vi como eu era frágil. E atinei, finalmente, para o quanto todos nós somos frágeis. Filosofia de botequim, sem dúvida. Sou dado a filosofias de botequim. Bem. Escolha qualquer pessoa e a observe. Você verá como ela é frágil e patética e digna de compaixão. Mesmo as bonitas, quiçá especialmente as bonitas, todas são dignas de compaixão. Repare nos defeitos, que sempre os há: repare nas canelas finas, na bunda batida, repare na orelha grande, na boca torta. Mas repare também no nariz perfeito, nos seios empinados, nos bíceps volumosos. Repare nas roupas, tão frágeis e patéticas e dignas de compaixão (tudo o que se relaciona com o ser humano é patético e frágil e digno de compaixão): repare na bolsa humilde e na calça esgarçada, repare no vestido chique, na gravata cara, nos óculos de grife. Tudo é tão pequeno e frágil, tudo é tão precário, tudo é tão vão. E, que coisa surpreendente, nós vamos vivendo como se isto não fosse conosco. Vamos vivendo como se tivéssemos domínio sobre as coisas, sobre as circunstâncias. Vamos vivendo, enfim, como se fôssemos os senhores feudais da vida. E no entanto tudo que tocamos, tudo que construímos, tudo que pensamos, a tudo isso nós transmitimos, como uma doença, o comovente legado da nossa fragilidade.
quarta-feira, 4 de abril de 2012
NOSSO MUNDO PERDULÁRIO
Um dos chocolates de que eu mais gostava, quando era criança, era o Baton Garoto. Como não tinha dinheiro para comprá-lo quando quisesse, costumava (ah, vergonha) chupá-lo como a um picolé, para que demorasse a acabar. Dia desses estive numa festa em que havia uma bacia cheia de Batons. Que riqueza, que mundo perdulário! Eu catava os Batons, um, dois, três, e, enquanto me empanturrava (já estava começando a enjoar) pensava na abundância desavergonhada de hoje em dia. Antigamente, na casa dos meus pais, certas comidas e guloseimas eram raras. O presunto e o queijo prato, por exemplo, eu os considerava iguarias. Era um acontecimento quando podíamos comer um misto-quente. E nem falar em refrigerante! Os ricos, naquela época, não eram tão ricos como os de agora, e sua abundância era menos acintosa. Hoje os ricos são inacessíveis, perdulários e não raro estúpidos. Naquela época os pobres, sempre muito honrados, acreditavam que o fato de serem pobres, e de haverem ricos, era uma escolha divina que não lhes cabia contestar. Hoje se enchem de rancor contra os ricos e mal se contêm, de ganas de os bater e chutar, ao ver as migalhas que caem de suas mesas. Culpa, imagino, do nosso mundo perdulário.
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