sábado, 31 de dezembro de 2011

CONHEÇO ESSE LUGAR

Antonio Muñoz Molina, em seu blog, assim se refere à administração pública espanhola (na verdade, à administração pública municipal - provincial - espanhola, neste caso, a da Andaluzia): "[…] abundância de pistolões e cargos políticos - 'de confiança', 'de livre nomeação' - que se dedicam sobretudo a viver parasitariamente do dinheiro público e a traficar com palavras: 'unidades de gestão', 'controles de excelência', 'parâmetros', 'perfis'". E continua: "[…] os salários estão congelados, as vagas geradas pelas aposentadorias por invalidez não são preenchidas: mas o delegado provincial da Secretaria de Cultura dispõe de dez assessores de imprensa, todos nomeados a dedo. Numa linha de bondes que bagunçou durante anos as ruas do centro da cidade e que até hoje não funciona a prefeitura gastou cerca de três bilhões de pesetas [o equivalente a dezoito milhões de euros].” Molina não é o primeiro que leio a falar destas mazelas espanholas: Javier Marías também as denuncia corriqueiramente em El País. Triste herança ibérica, essa nossa: Portugal e Espanha são nossos ancestrais políticos. Deles herdamos as manias, os vícios, os desvios. Me pergunto o que teremos herdado de positivo. Há de haver alguma coisa, só não sei o que é...

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

UM SINAL INEQUÍVOCO

Ontem dona Antônia, a diarista, veio limpar a casa, como costuma fazer todas as segundas-feiras. Antes de sair, me perguntou: Por que o senhor sempre guarda os sapatos embaixo da cama? Sem saber o que responder, improvisei uma explicação vaga e, mudando de assunto, emendei: A senhora limpou o armário do banheiro? Respondeu-me com uma cara que me censurava a impertinência da questão. Quando enfim saiu, senti-me incomodado e fui até a varanda. Debruçado sobre o parapeito, me perguntei: por que sempre guardo os sapatos embaixo da cama? Olhei para trás. A casa, como de costume, estava silenciosa; como de costume, o pôr do sol (era final de tarde), pintava a mesma sombra de todos os dias no chão da sala. De repente, sem que eu compreendesse ao certo seu significado, brotou em mim uma resposta (uma das possíveis): os sapatos embaixo da cama, dona Antônia, são um sinal inequívoco.

sábado, 24 de dezembro de 2011

NOITE DE NATAL

Eu estava a esta mesma janela quando o vi sair pela manhã. Ia parcialmente paramentado: botas pretas impecáveis, calças vermelhas de cetim. Às costas levava o saco no qual certamente guardava o resto da indumentária: a casaca, o cinto, a barba postiça, o gorro, as luvas. Sumiu rápido, dobrando a esquina. Agora, olhando a rua enquanto lavo os pratos (meus convidados já foram embora e minha esposa e meu filho já foram dormir) vejo-o chegar pela mesma esquina. Vem quase do mesmo jeito: sem gorro e sem barba, o saco às costas; está usando a casaca vermelha, porém. Quanto às botas, me pergunto se estão limpas. Sobe os três degraus que levam à porta de sua casa e coloca o saco no chão enquanto procura a chave no bolso. Abre a porta e, parado à soleira, liga a luz da sala. Dá dois passos para dentro, deixa cair o saco no chão e fecha a porta. Pela janela iluminada posso ver um pedaço da sala: um quadro pendurado à parede, um tampo de mesa. Ele para diante da janela e tira a casaca. Parece hesitar, como se não soubesse o que fazer. Some, depois volta. Então vem de novo até a janela e a abre. E me vê. Tenho a estranha sensação de que fui surpreendido fazendo algo errado ou, mais estranhamente, de que fui surpreendido testemunhando um crime. Sinto-me como um L.B. Jeffries, de Janela Indiscreta. No filme, Jeffries suspeita que o cara do outro lado da rua deu um fim na esposa. Nessa história, porém, o cara do outro lado da rua, meu vizinho com quem nunca falei, não poderia fazer nada parecido. Que eu saiba, não tem esposa, nem filhos. Nunca vi ninguém minimamente assemelhado a um parente entrar em sua casa. Talvez eu deva convidá-lo para vir aqui, beber o resto do vinho comigo. Poderíamos sentar nos degraus, sob o alpendre, ao lado do canteiro de flores que minha esposa rega todos os dias. Enquanto penso nisso, ele fecha a janela e apaga a luz, e a luz se apaga. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A LAGOA DAS OLARIAS

Se tinha um lugar por onde o fim do mundo podia começar era pela Lagoa das Olarias. Mas não era bem o fim do mundo que me preocupava (não o fim do mundo como conceito): o que me preocupava era o fim de Arapiraca, que podia começar ali, aos meus pés. A Lagoa das Olarias, santo Deus, podia engolir a cidade inteira e, por consequência, o mundo – o meu mundo e tudo o que eu conhecia. Quanto ao mundo real, bem, minha cabeça de criança ainda não atribuía tanta importância a ele. O mundo real era uma coisa informe e meio abstrata – palavras estranhas aprendidas em livros de História e Geografia. De modo que, se Arapiraca se afundasse na Lagoa das Olarias (na época eu sequer sabia que era esse seu nome), o mundo inteiro se acabaria. Mas pior que isso, pior que esta possibilidade, era enfrentar o monstro sem lança e escudo, como eu fazia todo domingo. Todo domingo, às dezoito e cinquenta, meus pais insistiam em atravessar a ponte do Alto do Cruzeiro, que se estendia sobre a temida lagoa, para assistir à missa das sete, na igreja do mesmo nome. E, claro, me levavam junto. Creio que nunca contei a eles do meu medo (algum vago pudor me impedia, algum vago prurido masculino: homem não pode ter medo, parece). Não me recordo bem, mas acho que perguntava, como se fosse simples curiosidade, o que eram aquelas coisas boiando sobre a lagoa, aquelas folhas verdes misteriosas, ondulantes, vivas (talvez viesse daí o meu medo). Estou quase certo de que eles me explicavam que aquelas coisas eram simples plantas aquáticas. Não adiantava muito. Se ao menos elas não cobrissem a lagoa inteira, dando-lhe aquele aspecto misterioso... Das outras lagoas, das lagoas normais, eu não tinha medo algum. Atravessávamos pois a ponte (eu me lembro da calçada irregular, cheia de inquietantes rachaduras) e seguíamos em direção à igreja, onde eu assistia aos primeiros minutos de missa ainda meio esbaforido. E, depois da missa, claro, tinha a volta. Não havia caminho alternativo: tínhamos que voltar pela ponte, que ligava a parte baixa à parte alta da cidade. De alguma forma, porém, a volta era menos inquietante. Talvez porque fosse a segunda metade da jornada, talvez porque fosse, afinal, a volta para casa, que é sempre um abrigo. Pensando bem, também havia ameaças em casa: o Fantástico, por exemplo, não era uma revista eletrônica semanal, como hoje se autointitula. Na época, o Fantástico era um programa coalhado de ameaças. Era a época da guerra fria, e vai-não-vem eu assistia, a medo, reportagens alarmantes sobre a iminência de uma guerra nuclear. E se as bombas atômicas impedissem as minhas inocentes peladinhas de rua? É dura a vida das crianças. Mas a Lagoa das Olarias era uma ameaça mais concreta. Estava ali pertinho, a alguns passos da minha casa. Com o tempo a lagoa foi domada, por assim dizer: de pântano assustador, cheio de sapos, grilos e sons estranhos, virou um córrego mirrado e fedorento, cheio de dejetos. Passaram-se mais alguns anos e suas margens foram diminuindo gradativamente, até virarem um aterro e depois um parque. Hoje, quando passo pela ponte (que, a bem da verdade, não é mais ponte), mal me lembro da ameaça. De dia, a luz do sol, seca e implacável, ilumina as árvores, os bancos, a grama; à noite, dezenas de postes emprestam sua luz amarela ao ócio dos que vão gozar a brisa. É uma infância sem graça, a dos meninos de hoje! Não há bicho papão que os aterrorize. E os meninos de Arapiraca, pobres coitados, não têm mais um lugar de medo como eu tinha, um lugar que me fazia querer voltar para casa o mais rápido possível. Em casa, sob a barra da saia da minha mãe, agarrado às dobras da calça do meu pai, eu imaginava que o mundo talvez tivesse alguma esperança de salvação.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

MATO SEM CACHORRO

Então a coleira do Totó soltou-se e ele, Totó, surpreso, deu uma olhadinha para o dono, que a princípio não percebeu o que havia se passado. Percebeu assim que o cachorro, com a língua para fora, virou-se para uns arbustos mais à frente e, sem esperar uma permissão que sabia que não viria, sem esperar a ordem de ficar, começou a correr. Ao chegar aos arbustos, olhou para trás e se meteu por entre as folhas. O dono chegou bem depois, esbaforido. Pôs-se de quatro e chamou: Totó! Silêncio. Ainda de quatro, tentou entrar pelos arbustos, mas não conseguiu. Eram estranhamente cerrados, aqueles arbustos. Levantou-se, olhou para trás e percebeu que não havia mais ninguém no campo. Desalentado, voltou a ficar de quatro e enfiou, a custo, a cabeça nos arbustos. Com esforço, abriu um pequeno espaço entre os galhos duros e nodosos e entrou mais um pouco. Chamou novamente o cão, que não respondeu. Quando já se dispunha a desistir e voltar, quem sabe contornar os arbustos e encontrar o cachorro do outro lado, teve a sensação de que nada daquilo era real. Não podia estar sozinho num campo onde ainda agora havia dezenas de pessoas, não podia estar tentando penetrar em arbustos tão densos, quase uma floresta, e não podia (só notava agora) estar preso naqueles galhos. A irrealidade instalou-se de vez quando sentiu um calor perto do rosto, algo que só podia definir como um hálito com cheiro de cinzas. A custo virou a cabeça para a direita. E então, em vez do cachorro, viu as narinas infladas, chamejantes como um lança-chamas, e a bocarra enorme, descomunal, uma bocarra que não podia estar escondida nuns arbustos tão pequenininhos, e os olhos inflamados, grandes como bolas de futebol, de um dragão, um dragão, veja só, como naqueles de livros de contos de fadas.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

ESSE TIPO AÍ

Hoje vi um garotão malhado estacionando seu carrão numa vaga reservada para idosos. Veio rápido pelo estacionamento do shopping (parecia que estava numa pista de corrida), viu a vaga e, sem hesitação, estacionou. Saiu do carro sozinho, autoconfiante como um astro de cinema. Vestia uma camisa polo apertadinha (Tommy Hilfiger, Polo Ralph Lauren ou Lacoste) e seus bíceps pareciam colinas verticais. Eis aí, pensei, o tipo de brasileiro que a gente admira: o brasileiro que não se sujeita às regras, o brasileiro desenrolado. A gente diz: que ginga, que malemolência, que esperteza tem o brasileiro!, mas não se apercebe, ou não quer admitir (o que é mais provável), que essa ginga, essa malemolência e essa esperteza têm outro nome, um nome bem nosso: jeitinho. E parece, só parece, que a gente já não gosta mais do jeitinho. Mas a gente gosta, e, para mascarar a coisa (consciente ou inconscientemente), dá a ele uma porção de nomes legais (ginga, criatividade, malandragem), nomes que supostamente traduzem nossas “qualidades” como povo. Papo furado. O que a gente mais admira no brasileiro é o que o torna mais primitivo, mais incivilizado. Esse tipo aí, que estaciona carro em vaga de idoso ou de deficiente, é o mesmo tipo que atravessa o carro no estacionamento, ocupando duas vagas ao invés de uma; é o mesmo tipo que pega a contramão para ganhar tempo (o trânsito é uma excelente medida do nosso caráter); é o mesmo tipo que fura a fila com o maior descaramento; é o mesmo tipo que, quando descobre que a alguém ocupa um cargo público, não se envergonha de chegar com ar de quem sabe das coisas e sussurrar: eu sei que você pode dar um jeito; é o mesmo tipo que “come” uma mulher, como ele mesmo gosta de dizer, e no dia seguinte se gaba pros amigos; é o mesmo tipo que toma cerveja enquanto dirige e depois joga a latinha pela janela; é o mesmo tipo que vai à praia e deixa o lixo na areia; é o mesmo tipo que deixa o cachorro cagar na rua e não recolhe a caca. Na minha concepção, esses aí (e são a maioria) estão todos dando um jeitinho. E, pensando bem, são iguais aos nossos políticos. Não é porque fazem bobagenzinhas, amplamente toleradas, que são menos piores que os nossos políticos. Não temos o direito, aliás, de reclamar da nossa classe política. Ninguém de nós pode dizer que está mal representado. As nossas pequeninas baixezas cotidianas, o nosso jeitinho, são o ensaio acanhado, por enquanto tímido, para as grandes sacanagens, para os escândalos públicos. Como nem todos podem estar nas câmaras, assembleias e palácios, há que se escolher uns poucos. Quem sabe um dia, pensamos, ainda não dominamos a arte e a ciência do jeitinho em escala municipal, estadual ou nacional?  Mas volto ao garotão que estacionou o carro na vaga dos idosos. Não duvido que o garotão seja um espelho do pai. O pai deve ser um desses “comedores”. Deve ser o tipo próspero, que bebe uísque esparramado no sofá, sua imensa barriga gelatinosa espalhada para todos os lados, fumando um charuto, contando piadas vulgares sobre como levou a melhor sobre fulano ou sicrano. Meu filho, nunca deixe que levem a melhor sobre você. O mundo está cheio de otários; não seja um deles. Talvez seja político, deputado, vereador ou prefeito, o pai do garotão. Se não for, talvez seja amigo. Mas pode ser que não seja nenhuma das duas coisas. Nesse caso, esparramado no sofá, contando piadas sobre as mulheres que comeu (os olhos do filho brilham: quero ser igual ao meu pai, meu pai gordo e bem sucedido), não me surpreenderia se reclamasse dos políticos e de seus malfeitos (o brasileiro não enxerga a trave no próprio olho). Meu filho, dirá o pai, sentencioso, a própria torpeza sempre tem justificativa; a alheia, não. A torpeza alheia, meu filho, é imperdoável.

domingo, 18 de dezembro de 2011

O BATOM DA JULIA ROBERTS

Eu pensava no batom da Julia Roberts quando ela apareceu. Não a Julia Roberts, claro, mas a mulher que eu esperava. Eu pensava que o batom era, para a Julia Roberts, o elemento mais importante de sua maquiagem. Mais importante que os blushes, mais importante que os cílios postiços, mais importante que os pós. Não fosse pelo batom, eu pensava, a Julia Roberts não seria ninguém. Só com aquela bocona enorme (bonita, vá lá, mas absolutamente pálida e sem graça), a Julia Roberts não faria um pingo de sucesso. O batom era indispensável. Era o ator coadjuvante de sua carreira, e merecia um Oscar. Veja a Julia Roberts em Erin Brockovich, com aquela bocona vermelha, com aqueles peitões empinados (peitões, aliás, que ela também não tem, e que só podem ter sido obra do sutiã): ela era a própria boca. E sua boca era seu batom. Veja agora ela naquele filme, como é mesmo o nome?, aquele do Dr. Jekyll e do Mr. Hyde. Como é mesmo o nome? Mary Reilly, isso. Ali, embora você possa me dizer que a maquiagem tenha sido bolada para desfavorecê-la, ali eu tive certeza de que a Julia Roberts era apenas Julia Roberts. Não sei se você me entende. Julia Roberts não é uma linda mulher. Tenho certeza de que ao acordar ela é igualzinha à Mary Reilly. Claro, não é tão ruiva. Mas certamente é tão pálida e sem graça quanto. Eu pensava se queria acordar ao lado da Julia Roberts, a de Mary Reilly, quando apareceu a mulher a que me refiro, a mulher que eu esperava. Ela apareceu no exato momento em que eu pensava estas coisas, e, como nas revelações, como quando você subitamente compreende tudo, mesmo que tal compreensão não leve você a lugar nenhum, pois você não pode modificar uma vírgula de nada neste mundo, naquele momento eu compreendi que ela, aquela por quem eu esperava, era igual à Julia Roberts. Compreendi, com vergonha, por ela e por mim (mais por mim!), que ela sempre precisaria de um batonzinho, talvez de um blush, quiçá de uns pós para colocar na cara e assim disfarçar sua inegável mediocridade.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O ENTEADO

É um livrinho fino mas difícil, e mais de uma vez pensei em abandoná-lo pelo que contém de lentidão, de descrição minuciosa e obsessiva. De alguma forma, porém, eu podia perceber (e confirmaria depois) que o recurso às descrições era proposital. Quando se punha a descrever a vegetação, o clima, as menores particularidades do dia ou da noite (o modo como o sol se deslocava no céu, por exemplo), e quando tornava a narrativa, por causa desta descrição exacerbada (mas bela e poética) algo quase insuportável, era isto mesmo que Juan José Saer buscava fazer: tornar irreal um mundo absolutamente real e concreto, um mundo de areia, vegetação, rio. Prolongando esta sensação de irrealidade ao longo da primeira metade do livro, Saer consegue transmitir ao leitor, com inegável exatidão (se é que se pode falar em exatidão quando se fala em irrealidade), a experiência dos dez anos que o narrador (um europeu, um civilizado), passou entre os índios Colastiné. Como talvez gostem de dizer os especialistas, o livro tem vários níveis interpretativos. Pode-se dizer, por exemplo, que é uma elegante denúncia dos equívocos da colonização, ou que é uma crítica à arrogância dos autoproclamados cultos ou civilizados. Não me detenho em nenhuma destas interpretações, nem estou particularmente interessado em descobrir que motivos animaram Saer a escrever sua história. Estou interessado, isso sim, na irrealidade do livro. Porque sempre que eu fechava o livro, depois de lê-lo com vagar, como convém a esse tipo de leitura, eu olhava para o mundo ao meu redor com uma sensação de estranhamento. E, de modo igualmente inquietante, sempre que eu abria o livro e retomava a leitura, e avançava por quatro, cinco, seis linhas, sentia como se estivesse deixando o mundo para trás e atravessando uma porta que me levasse diretamente aos Colastiné. Na segunda metade do livro, quando o narrador finalmente deixa aquele mundo de pesadelo para trás (não se preocupe o leitor com esta informação, pois desde o começo, desde a contracapa, sabe-se que o narrador não está mais lá), a leitura fica um pouco mais fluída e o texto como que enfuna as velas. Agora vai, diz o leitor. Mas ele logo descobre, consternado, que o mundo civilizado não é menos incerto, nem menos irreal, que o mundo dos Colastiné. Aos poucos, como que para reforçar essa constatação desalentadora, ressurgem as descrições, as minúcias, e mesmo uma certa abstração, que acabam por se impor novamente. A prosa de Saer, tão deliberadamente lenta e ensimesmada, transmite com eficiência essa impressão de irrealidade, de absurdo, de abstração. A coisa chegou a tal ponto que pensei que Saer brincava. Há um trecho em que o narrador comenta, perplexo, o sucesso inesperado de uma comédia que ele mesmo havia escrito sobre suas próprias desventuras. Ele diz: “Às vezes, de propósito, modificava o sentido dos diálogos, retorcendo-os até transformá-los em períodos ocos e absurdos, com a esperança de que o público, percebendo, finalmente desbaratasse a impostura, mas essas manobras não modificavam em nada o comportamento das multidões.” Estaria Juan José Saer falando dos seus próprios procedimentos e de sua própria obra? Provavelmente não (mas não é descabido pensar que sim), pois ele logo emenda uma passagem que ilustra o valor do seu livro, recheado de pequenos achados filosóficos: “Algo exterior a eles, a fama que nos precedia ou a lenda que havia dado origem à comédia, havia determinado de antemão que nossa representação deveria ter um sentido, e a multidão, maquinal, encontrava-o de imediato, extasiando-se com ele.” Há ou não há aí algo muito verdadeiro a respeito do modo como pensamos? A despeito destes achados filosóficos (que pontuam, como oásis benfazejos, o grande deserto das descrições), comecei a me sentir cansado. Sentia falta dos fatos, dos prosaicos e reconfortantes fatos, tão indispensáveis numa narrativa. Saer, a partir de certo ponto, passara a fornecer explicações demais, ideias demais, pensamentos demais. O ato que se segue ao ato, a substância mesma de uma história, ausentou-se da narrativa, dando lugar à especulação filosófica. Senti-me ligeiramente defraudado, como alguém que compra um ingresso para uma comédia e se depara com um drama, ou vice-versa. Comprei narração e recebi ensaio. Se tivesse comprado ensaio, não teria me queixado. Terminei o livro com um sentimento contraditório: tinha lido uma obra de inquestionável valor literário, mas estava insatisfeito. Felicitava-me por ter lido, mas me perguntava se poderia reler. A despeito disso, eu tinha uma certeza: as imagens do livro permaneceriam por muito tempo na minha memória de leitor. Como o narrador, amarguei dez anos entre os índios Colastiné; como o narrador, padeci o pungente e insatisfatório convívio com a civilização. Estive dentro da narrativa - e não voltei indiferente. Esta é ou não é uma das maiores proezas da boa literatura?

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

RELATIVISMO

Embora a rua em que eu moro seja de mão única, muitos motoristas fingem não saber disto, e a trafegam como se fosse de mão dupla. São tão desavergonhados e tão seguros, habitam tão confortavelmente um mundo que só a eles pertence (as regras, segundo seu prudente julgamento, são uma tola invenção de tolos), que quando os vejo vindo em minha direção – surpreendo-me ao ver seus rostos serenos por trás dos para-brisas, sua expressão ausente e confiante –, às vezes sou tomado pela inquietante sensação de que eu é que estou na contramão, de que eu é que estou errado. E o pior é que não adianta buzinar ou dar jogo de luz, pois a única coisa que às vezes consigo é que olhem para mim legitimamente surpreendidos, como se eu fosse um lunático.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

HARUKI MURAKAMI

Haruki Murakami escreve sempre os mesmos livros. (Desconfio que todos os escritores escrevem sempre os mesmos livros, mesmo aqueles que, no livro seguinte, escrevem uma história completamente diferente.) Haruki Murakami não tem vergonha de escrever sempre os mesmos livros. Mesmo os seus contos são todos um conto só. E o que é mais curioso: nos livros e nos contos de Murakami não acontece nada. Quer dizer, acontece, só que de modo gradual, como a maioria das coisas da vida. Na vida, se a gente for reparar, não são comuns as grandes reviravoltas. Nos livros de Murakami, como na vida, as coisas vão acontecendo como um dia atrás do outro. Os personagens de Murakami, silenciosos, inadaptados, não fazem outra coisa senão sentar-se à mesa de cafés, tomar metrôs, caminhar pela cidade e conversar. Conversar sempre e mais um pouco. Aonde vai dar tanta conversa?, a gente se pergunta. Mas, como é uma boa conversa, a gente não se entedia. Eles estão sentados num bar, de madrugada, ou numa cafeteria, e é como se você estivesse na mesa ao lado, tomando um café e lendo um livro. (Faça um exercício de imaginação e convença-se de que você está sentado à mesa da cafeteria – uma mesa com tampo de fórmica – lendo um livro de Haruki Murakami. Para completar o cenário, imagine também que a cafeteria tem portas de vidro e, no teto, luzes fluorescentes. Não se preocupe: tal como você, os personagens de Murakami quase sempre andam com um livro debaixo do braço.) Você está lendo, então. E aí, entre um parágrafo e outro, você escuta a conversa dos personagens. E você se interessa. Você quer saber aonde essa conversa vai dar. É assim que os livros de Haruki Murakami funcionam. É assim que ele nos prende. Mas aonde essa conversa vai dar, afinal? Vai dar em nós, na essência das nossas experiências. Na nossa dor e na nossa solidão. Na estranheza que é este mundo. Enquanto lê (ou ouve), você vai se aproximando de alguma verdade – e vai se incomodando. E então você percebe, sem saber como, que chegou lá. O livro chegou lá. Nada aconteceu, mas aconteceu tudo que tinha que acontecer. Um exemplo. Lá para o final de Norwegian Wood, que terminei dia desses, esta frase me estremeceu: “As coisas fluem para onde têm que fluir, e por mais que você se esforce e tente fazer o melhor possível, quando chega o momento de ferir alguém, você fere.” Assim, fora do contexto, a frase é uma obviedade. Mas no livro – ah, no livro – ela tem um poder tremendo. Quase impossível sair ileso.

SEIS PERPLEXIDADES

Encontrei este interessantíssimo post (dia 9 de dezembro) no blog do Andrés Neuman. A tradução é minha e livre:

“Uma bela revista chilena me pediu, horror, seis conselhos para escritores principiantes. Minha perplexa resposta poderia ser a seguinte:

1. Não aceitar atitudes paternalistas por parte dos autores mais velhos. Eles também foram jovens e, com toda probabilidade, muito mais desinformados.

2. A tradição não pesa; convida. Escrevemos enquanto lemos: a escrita é uma forma suprema de releitura.

3. Tentar, errar e repetir. Um mau manuscrito é muito mais corajoso que um suposto gênio que se abstém por via das dúvidas.

4. Corrigir até o limite da impaciência.

5. Recordar que todos somos principiantes: a escrita é uma arte inaugural e não tem peritos.

6. Não aceitar seis conselhos de ninguém. Um já é um abuso.”

domingo, 11 de dezembro de 2011

TECNOLOGIA

Quando eu era criança, o máximo de tecnologia que podia haver numa casa eram o rádio, que ainda tinha um certo prestígio, e a televisão. Esta, claro, não tinha controle remoto, e se o sujeito quisesse trocar de canal, imagine, tinha que fazer essa coisa pré-histórica que era levantar-se do sofá e, aproximando-se da tela, erguer a mão para girar o seletor de canais. O mais curioso é que ninguém reclamava. Uma vez, lá para o início da década de oitenta do século passado, meu pai comprou uma televisão Mitsubishi com controle remoto. Nossa primeira televisão com controle remoto! Lembro-me que sentávamos no sofá, diante da televisão, segurando aquela caixinha retangular que continha um único botão em sua parte superior. A gente apertava o botão e o canal mudava – só que em sequência. Se, por exemplo, a gente estava assistindo o canal 7 e queria ir para o 3, tinha que apertar o botão várias vezes, até chegar ao último canal (que, se não me engano, era o 13) e aí reiniciar a sequência, até chegar ao 3. Mas o pior não era isso. O pior era que o controle remoto não era tão remoto assim: estava unido à televisão por um fio. Sério. Hoje parece quase impossível viver sem a tecnologia atual. Quase ninguém mais sabe escrever num caderno, por exemplo. Minha mão mesmo, depois de certo tempo segurando uma caneta, começa a doer. E se uma tempestade solar (basta uma sólida tempestade solar) danificasse todos os nossos satélites? Adeus, internet. Adeus, operações bancárias online. Adeus, transmissão ao vivo de jogos de futebol. E (o horror, o horror) adeus, celulares. Você sabe o que é não poder ligar para alguém? Antigamente, se quiséssemos falar com alguém por telefone, tínhamos que esperar a pessoa chegar em casa. Era comum a gente perguntar: que horas você vai estar em casa? Na rua, o sujeito era virtualmente inalcançável. E as primitivas transações bancárias de alguns anos atrás? O sujeito tinha que ir ao banco, preencher um formulário e esperar horas na fila – e isso apenas para fazer um saque. Que me conste, ninguém reclamava – não mais que hoje. Ninguém, aliás, achava que podia ser diferente. O problema com a tecnologia é que ela cria dependência. Se um dia ela nos faltar, não saberemos o que fazer. Ler um livro, talvez? Levar a cadeira para a calçada para conversar com os vizinhos? Rascunhar bobagens num caderno? Não haverá GPS, nem torpedos, nem compras pela Amazon. Se quisermos encomendar algum produto, vamos ter de fazê-lo à moda antiga. Nas páginas de propaganda das revistas de antigamente havia uns cupons que você tinha que preencher se quisesse encomendar o produto anunciado. Você preenchia o cupom, recortava-o e depositava-o no correio. Você consegue se imaginar saindo de casa para levar um cupom à agência dos correios? Há quanto tempo você não leva uma carta à agência dos correios? Você já imaginou o que é não ter notícias de outra pessoa até que ela lhe escreva – e à mão? (Era de má-educação escrever cartas pessoais à máquina.) Era assim que as coisas aconteciam antigamente. É assim que as coisas podem voltar a ser – basta uma boa tempestade solar. Ninguém mais iria rir do controle remoto com fio.

sábado, 10 de dezembro de 2011

MANHÃ DE SÁBADO


É uma manhã quente de sábado. O céu é de um azul profundo. Umas nuvens ralas perdem-se lá para o horizonte, onde imagino ver três ou quatro palmeiras. Sopra um vento quente, que não sei de onde vem (talvez da praia), um vento que se filtra por entre os edifícios da orla (imagino) e vai chegando, cada vez mais irritado, espremido entre os prédios, até o centro da cidade. Aqui ele sopra de mau humor sobre as casas velhas, de fachadas descascando. E balança, irritado, como se os quisesse derrubar, os mil fios e gambiarras dos postes tortos. As lojas, acanhadas e sujas de poeira, com marquises de zinco, estão cheias de clientes. Alguns conversam parados nas portas, as testas oleosas, as camisas suadas, como se se perguntassem: para onde agora? (Não é aconselhável sair ao sol sem destino certo). O vento sopra sem parar, jogando para o alto sacos plásticos, pedaços de papel e folhas secas. Eu penso que isto aqui poderia ser uma cidade da Índia, ou do Marrocos, ou do Egito. Todas as cidades pobres se parecem sob o sol. Todas as cidades pobres e populosas se parecem sob o sol. Há pouco passei por uma oficina de automóveis. À porta, quatro ou cinco homens provavam óculos de sol. O vendedor, parado diante deles, era um destes ambulantes que perambulam com os óculos pendurados num mostrador improvisado. Entre sorrisos, os homens levavam os óculos ao rosto, e as etiquetas penduradas na ponta de seus narizes lhes davam um ar cômico, de palhaços. Estou parado diante de uma loja, debaixo de uma marquise de zinco. Ao meu redor, dezenas de lojas de motos e de bicicletas. Na rua, carros de todas as condições (predominantemente velhos) estão estacionados em qualquer lugar e de qualquer maneira. A rua, de terra seca, batida, está cheia de restos de papelão, de sacos plásticos, de copos descartáveis e de latas de refrigerante (aqui perto vejo um prato de plástico e uma embalagem de detergente). Parece que um dia, muito tempo atrás, aqui já houve calçamento: vejo pedaços de pedra e de cimento, e paralelepípedos. Um fio de esgoto corre a céu aberto – uma água preta, suja. Então, quase meio dia, o trem passa devagar, apitando. Ninguém se volta para olhá-lo, apenas eu. Enquanto passa, arrastando preguiçoso cinco ou seis vagões de passageiros, vejo umas poucas pessoas às janelas. Algumas, o braço apoiado no peitoril, descansam o queixo na mão. Têm algo de bois, essas pessoas. Tem algo do olhar do boi, resignado e melancólico, o olhar dessas pessoas.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

FASCÍNIO

As fotos do depósito da Amazon em Swansea, Wales, são uma coisa de dar medo. Não, não há nada de assustador ali, na verdade – não no sentido comum. O que dá medo (medo é maneira de falar) é a dimensão absurda do lugar: uma coisa irreal, exagerada, de ficção. Isto aí, pensei comigo, é a materialização da globalização. É a globalização (pelo menos em seu aspecto mais positivo) tornada palpável. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras. Às vezes tenho minhas dúvidas. Mas aqui é o caso de se curvar à imagem. Alguém pergunta: o que é a globalização? E o sujeito vai e mostra as fotos do depósito da Amazon em Wales. Não posso deixar de pensar naquele depósito à noite, quando todos os funcionários já saíram e ficaram apenas, nos cantos, os guardas sonolentos. Deve ter o aspecto de cenário de filme de Indiana Jones: uma daquelas cavernas escuras cheias de tesouros incríveis. Quando eu era pequeno, um amigo do meu pai pediu para guardar no quarto dos fundos da nossa casa umas miudezas de armarinho. O negócio dele havia fechado e, por enquanto, as coisas não tinham destino certo. Meu pai concordou e um belo dia o pequeno tesouro de bugigangas (linhas, agulhas, botões, fitas, caixas, etc.) foi levado para o quartinho dos fundos, onde passou alguns meses guardado, atiçando a minha imaginação. Eu não podia entrar no quartinho: meus pais não queriam arriscar sua reputação de fiéis depositários. Vai que eu levava um botão. À noite, deitado na cama, eu imaginava como estaria o quartinho àquela hora. Que aspecto teria o monte de bugigangas quase da altura do teto, entrevisto rapidamente durante o dia? Ao ver as fotos do depósito da Amazon, senti o mesmo fascínio. Aquilo à noite, pensei, deve ser incrível. Melhor que filme de mistério. Que som produzirão os passos dos guardas quando eles se levantam de suas cadeiras e, sonolentos, percorrem sem pressa os corredores fantasmagóricos? Que impressão darão aquelas pilhas de caixas de dezenas de metros de altura ao sujeito que as olha de baixo para cima? Que sombras aquelas prateleiras produzem à luz tênue de uns poucos refletores? Que tesouros de brinquedos, computadores, livros, dvds, roupas, sapatos e artigos esportivos não há ali? Quanta gente espera ansiosa por aquelas pequenas maravilhas? (Receber uma encomenda, para mim, é a mesma coisa que ganhar um presente.) Não é bom ser consumista, eu sei. Os críticos das sociedades de consumo têm sua razão. Mas quem não gostaria de fuçar, de perder-se, literalmente, naquele mundo de maravilhas?