“Imagine
estas ruínas à noite”, ela me diz. “Imagine estas colunas que
hoje já não sustentam mais nada, estas três colunas, por exemplo.
Não é verdade que já não sustentam mais nada, sustentam um friso
inútil, que vem de lugar nenhum e vai dar em lugar nenhum. Imagine”,
ela continua, sem me olhar, olhando para cima, para o friso ou para o
céu azul, “imagine”, ela me diz, “a lua lá no alto e tudo
isto aqui vazio, ninguém, nenhum destes turistas barulhentos”, e
faz um gesto para incluir os turistas barulhentos sem olhá-los, “a
lua lá no alto e o silêncio, o silêncio destas ruínas à noite, a
luz tão branca da lua lançando sombras, já pensou”, ela me
pergunta, “a lua lançando sombras no chão ao projetar-se sobre
estas colunas, sobre estes arcos, a pedra fria, branca.” E eu olho
ao redor, observo os turistas barulhentos, os turistas com suas
bolsas a tiracolo, frenéticos em busca de mais uma foto, apontando,
se acompanhados, aquela abóbada, aqueles arcos, aquelas janelas,
apontando para o amigo ou esposa ou mãe ou pai, tão embasbacados
como eles, aquelas magníficas ruínas, ou, se sozinhos, mirando
absortos as ruínas, como que perdidos, como que procurando
localizar-se, apenas mirando absortos aquela abóbada, aqueles arcos,
aquelas janelas para as quais não precisam apontar pois não há
quem siga seu dedo. Volto-me para ela. Continua falando mas eu já
não a ouço, prefiro imaginar, como ela pediu, imagino aquilo tudo à
noite, a luz branca da lua derramando-se fantasmagórica sobre as
colunas, seriam coríntias aquelas colunas, seria aquilo um capitel,
e logo imagino os turistas, os barulhentos turistas, tão felizes,
tão pacificados, tão satisfeitos em sua superficialidade, imagino
esses rebanhos escoando-se lentamente em direção aos hotéis,
imagino-os já no banho, alguns deles já na cama, alguns deles já
na cama, sim, e tudo isto aqui vazio e solitário e branco como a luz
da lua. Ela silencia, olhando ao redor. Nós também voltaremos para
o hotel, penso, voltaremos como os turistas barulhentos, voltaremos
lentos, cansados, bovinos. Mas duvido que satisfeitos, duvido que
pacificados.
quarta-feira, 30 de maio de 2012
segunda-feira, 28 de maio de 2012
EPÍTOME
Essas
mãos brancas (aliás, toda ela branca) de unhas sem esmalte (as
unhas das mulheres muito brancas, quando não pintadas, traem um não
sei quê de fragilidade), esses antebraços ossudos, de veias
visíveis, esses cabelos quase brancos de tão loiros, de tão
pálidos... Observo-a entretida, mexendo no celular, selecionando uma
música, os fones de ouvido postos, os fones de ouvido sobre seus
cabelos loiros como uma tiara. Vai ouvi-la agora, a música, enquanto
o vagão não sai (estamos no metrô), vai começar a ouvi-la e o
vagão sairá e ela ouvirá a música por dois, três minutos (a não
ser que seja uma ópera, uma longa sinfonia, uma longuíssima balada)
e depois, enquanto olha pela janela o mundo ficando para trás lá
fora (na escuridão do metrô o mundo é apenas um borrão escuro e
indistinto, os túneis que vão ficando para trás), ela esperará
que outra música comece, aquela vai acabando, outra vai começar.
Assim, distraída, parece que o seu futuro é a próxima música, ou
a estação em que vai descer, ou o almoço de mais tarde, quando
tiver resolvido as coisas que tem que resolver, quando tiver
conversado com as pessoas com quem tem que conversar. Eu a observo
sem ser observado (pelo menos não por ela) e penso que é
reconfortante que esteja entretida e penso que o mundo todo, nesse
momento, entrou nos eixos, como o vagão veloz sob a superfície, e
que está tudo certo, o trabalho, a hora do almoço, tudo vai
acontecer como tem que acontecer e não há por que se incomodar. Eu
penso estas coisas (não penso bem mas sinto bem) e, olhando a loira
tão loira e tão branca, olhando suas mãos brancas de veias
ramificadas, seus antebraços magros, puros feixes de músculos (seus
braços e seu tronco os recobre uma camiseta preta simples, sem
estampas), penso que ela é a epítome deste momento, deste vagão
inteiro, do mundo e do tempo aqui dentro contidos. Ela resume bem o
que se passa com a outra loira ao seu lado, que com o olhar vago
pensa talvez nos filhos ou no marido ou na mãe velhinha mas não se
incomoda, e o que se passa com a negra que lê, concentrada,
segurando-o com apenas uma mão, um livro grosso e sério e não se
incomoda, e o que se passa com o casal bem atrás dela, parecem
apaixonados e cansados e pensam, imagino, “Daqui a pouco chegaremos
ao nosso destino e por enquanto é bem que nos separemos, por
enquanto, só por enquanto” e não se incomodam. Ela, eu dizia, é
a epítome desse momento, o elemento principal deste quadro, ela em
primeiro plano e o resto de nós, meio borrados, em segundo, e é
importante que permaneça assim, distraída, despreocupada, como se
não houvesse nada no mundo a não ser a música que ouve e a música
seguinte, ou no máximo o almoço de mais tarde.
terça-feira, 22 de maio de 2012
DO QUE SE SABE E DO QUE NÃO SE SABE
“Tantas
coisas acontecem sem que ninguém saiba nem as recorde. De quase nada
há registro, os pensamentos e movimentos fugazes, os planos e os
desejos, a dúvida secreta, as fantasias, a crueldade e o insulto, as
palavras ditas e ouvidas e depois negadas o mal entendidas ou
tergiversadas, as promessas feitas e ignoradas, até mesmo por
aqueles a quem se fizeram, tudo se esquece ou prescreve, o que se faz
sozinho e não se anota e também quase tudo que não é solitário
mas em companhia, quão pouco vai ficando de cada indivíduo, de que
pouco há registro, e desse pouco que fica tanto se cala, e do que
não se cala se recorda depois uma mínima parte, e durante pouco
tempo, a memória individual não se transmite nem interessa ao que a
recebe, que forja e tem a sua própria.”
(Javier Marías, Mañana en la batalla piensa en mí)
(Javier Marías, Mañana en la batalla piensa en mí)
terça-feira, 15 de maio de 2012
NEOBUDISMO
Tenho imensa pena do cachorro fuçando o lixo:
suas patinhas sujas, seu focinho úmido, suas costelas pronunciadas,
dá tanta pena. Tenho imensa pena do gato cinza que vi no meio do
cruzamento: desistiu de passar no último instante e agora não se
decide a ir nem a voltar, os carros zunindo ao redor dele. Tenho
imensa pena da menina que vi há pouco, olhando com olhos apaixonados
o namorado que não lhe era indiferente nem nada e que na verdade não
cheguei a ver: estava de costas para mim, e também ele me deu pena. Tenho imensa pena do bebê
chorando: a mãe já vem, já vai chegar, mas mesmo assim dá tanta pena ver aqueles bracinhos, aquelas perninhas frenéticas. Tenho imensa pena
do homem rico que vi descer do esplêndido carro e olhá-lo com orgulho –
um carro! –, que imensa pena de sua barriga próspera. E tenho imensa
pena de mim mesmo: como devo dar pena quando as pessoas me olham e se fixam em
mim (comendo ou lendo ou esperando ou sorrindo)! Todo mundo, penso
(ou melhor, o mundo todo), dá pena se a gente presta atenção, se a gente presta atenção ainda que seja por alguns instantes.
terça-feira, 8 de maio de 2012
LIXO
Cheguei
à varanda quando ele já estava se levantando. Alcancei a ver que
estava vestido de preto (uma camisa preta folgada) e que estava de
bermuda. Vi pouca coisa mais: vi que tinha um saco plástico grande e
que ao levantar-se jogava o saco, meio cheio ou meio vazio,
sobre os ombros. Afastou-se sem olhar para trás, como que
despeitado. Deixou para trás um pequeno monte de lixo: uns papéis,
uns sacos plásticos, uma que outra coisa que não reconheci. Então,
quando sumiu do meu campo de visão (perdeu-se atrás do prédio
vizinho ao meu, à direita), olhei para o outro lado e vi mais lixo
espalhado pelo chão, sobre a calçada, e, ainda mais para a
esquerda, vi um monte grande de lixo, sacos plásticos azuis e
pretos, sacos plásticos brancos, papéis e outras coisas
indistinguíveis, que ele havia (dava para perceber) remexido depois
de tirá-las do contêiner onde repousavam enquanto não passava o
caminhão de lixo que iria recolhê-las. Uma bagunça. Olhei ao
redor: vi um carro preto estacionado deste lado da calçada; vi uma
casa com uma janela aberta e pela janela vi uma televisão ligada; vi
luzes acesas nalgumas janelas dos prédios do outro quarteirão. E
pensei que os porteiros, tanto o porteiro do meu prédio quanto o do
prédio vizinho ao meu, certamente tinham visto quando ele, o cara da
camisa preta folgada, remexera o lixo, quando ele bagunçara o lixo,
quando ele, com desfaçatez, com desprezo (sim, eu estava certo de
que ele agira com desprezo), esculhambara o que por si já é
esculhambado, mas que nós, por não sei que pudor, tentamos ordenar. Nós recolhemos o nosso lixo em
sacolas e os colocamos bem arrumadinhos na porta de nossas casas ou
apartamentos ou em contêineres especiais (sempre arrumadinhos), nós
pegamos o nosso lixo o levamos lá para fora, ou o colocamos ali no
canto, à porta da escada de emergência do nosso prédio. Pegamos o
lixo com a ponta dos dedos, como se não fosse nosso, como se não
tivéssemos responsabilidade sobre ele, como se outra pessoa o
houvesse entregado a nós e agora tivéssemos que nos desfazer dele,
que povo porco. Pois ele, o cara da camisa preta folgada, com
desfaçatez, com arrogância, esculhambara o que nós tínhamos
tentado organizar. Esculhambara o nosso lixo e os porteiros nem para
dar o alarme. Ele espalhara tudo na calçada e saíra sem olhar para
trás, sem se preocupar. Ele, de alguma maneira, o infame, ele
nos expusera.
quarta-feira, 2 de maio de 2012
CRESCER OU NÃO CRESCER, EIS A QUESTÃO
Por
dois motivos principais eu queria crescer. Primeiro para pegar as
coisas que os meus pais ou os meus tios ou mesmo os estranhos (não
sei com que autoridade estes últimos faziam isso) colocavam em cima
da estante. Não foram poucas as vezes em que fiquei pregado ao chão,
com carinha de inocente, olhando para o objeto do meu desejo lá no
alto. Às vezes só via a pontinha dele: a pontinha de uma caixa, de
um brinquedo confiscado, de um cristal, etc. (Saibam, oh, adultos, que
poucas coisas traumatizam mais uma criança que o brinquedo ou o
cristal no alto da estante.) O segundo motivo era sair sozinho de
casa. Uma vez quis ir sozinho para a escola – até para a escola! –
porque nesse dia, era um dia de chuva, os adultos discutiam quem ia
me levar, empurrando uns para os outros a obrigação. Lembro de ter
dito, resoluto: Vou sozinho, ao que me responderam silenciosamente com uns olhos que
diziam Ora, por favor. Quando finalmente perceberam que eu
acompanhava a discussão (afinal ela me dizia respeito),
envergonharam-se, imagino, e se decidiram: alguém me levou. Mas
havia outros motivos para que eu quisesse crescer (não tão
importantes quanto aqueles, claro), cada um deles adequado a
diferentes épocas de crescimento. Quando fiquei um pouquinho mais
velho, por exemplo (velho, aqui, quer dizer nove ou dez anos), eu
queria crescer para poder namorar, essa coisa de que todos falavam com urgência, emoção, segredo ou despeito. O fato é que os adultos
me avisavam, sem proveito, que crescer não tinha retorno e que eu
não gostaria tanto de ter crescido quando enfim crescesse. Não
adianta: as crianças são teimosas por natureza e enquanto não
sofrem na pele a experiência da realidade (afinal, nunca se sabe se
os adultos estão dizendo a verdade ou não), fazem ouvidos
moucos para conselhos, avisos e quejandos. Bem. Hoje alcanço as coisas
no alto das estantes, saio sozinho quando quero e há muito percebi
que os adultos tinham certa razão, mas só certa. Mas aí já era
tarde: eu tinha crescido.
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