quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

TEMPOS BOBOS

A febre do politicamente correto (mais que a febre, a doença) é altamente contagiosa. A tal ponto que não considero improvável que daqui a dez, vinte anos já não possamos compreender o que é a vida social hoje – isto é, como falamos, como nos comportamos, como nos exprimimos. O nosso passado recente nos parecerá remoto e incompreensível, e não é difícil imaginar que os cidadãos desse paranóico mundo novo, irremediavelmente abobalhados pela contagiosíssima doença do politicamente correto, já não consigam pensar por si próprios e talvez tenham que se submeter, ai, a comitês totalitários, que avaliarão previamente o que é escrito, filmado, dito e tocado, a fim de declarar, em caráter definitivo, se aquilo é ou não é aceitável, se aquilo é ou não é ofensivo, digamos, à comunidade dos ciclopes, que deve haver uma. Digo isso a propósito de uma notícia que li por esses dias: o Ministério Público Federal protocolou ação na Justiça Federal para tirar de circulação (não sei se no Brasil inteiro ou se apenas em Minas Gerais, onde a ação foi proposta) o Dicionário Houaiss, que, ao contrário do Aurélio e do Michaelis (as editoras Globo e Melhoramentos, responsáveis pela publicação dos respectivos dicionários, atenderam à recomendação do Ministério Público Federal, como o leitor compreenderá) teima em manter entre as muitas definições do verbete “cigano”, a despeito de persuasivas advertências, expressões consideradas (segundo o Ministério Público Federal) pejorativas e preconceituosas: "que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador", etc. E não é suficiente para aplacar a sanha politicamente correta encampada pelo MPF que no dicionário se avise, através da abreviatura pej. (pejorativo) que aquele é apenas um dos muitos significados historicamente atribuídos à palavra (pois o Houaiss não os tirou do nada, nem o Aurélio nem o Michaelis, antes de capitularem). Também não é suficiente que a despeito destas expressões encontre-se no dicionário, como principal definição para a palavra, a histórico-geográfica: “relativo a ou indivíduo dos ciganos, povo itinerante que emigrou do Norte da Índia para o oeste (antiga Pérsia, Egito), de onde se espalhou pelos países do ocidente; calom, zíngaro”. Segundo o procurador responsável pela ação, “Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, […] fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação.” Caráter discriminatório? Assumido? Desde quando, me pergunto, os dicionários não podem mais registrar uma definição histórica, mesmo indicando que é pejorativa, apenas porque hoje se entende que ela é preconceituosa? Se não me engano, até agora (pode ser que daqui em diante não mais, a seguir-se o exemplo do Aurélio e do Michaelis) o papel dos dicionários, em todos os povos e em todas as épocas, tem sido o de registrar: nele se registra o que está em uso na língua. Não são os dicionários, que eu saiba, que definem, que escolhem, que criam os sentidos que devem compor um verbete. Não é suprimindo-se a expressão no dicionário (ou pelo menos não deve ser, pois dicionário não é lei) que se conseguirá fazer com que uma expressão deixe de ser usada. A doença do politicamente correto está de tal modo disseminada na nossa sociedade esquizofrênica, que hoje é preciso pensar não duas vezes, como se diz, mas três, ou quatro, ou cinco, e não apenas antes de falar, mas antes de escrever, antes de filmar, antes de tocar. É de meter medo tentar dizer qualquer coisa, por mais tola que seja, e chegará talvez um tempo em que será preciso antes consultar um dicionário de expressões politicamente incorretas (ou um comitê, como dito mais acima), antes de aventurar-se nessa perigosa empreitada que é emitir uma opinião, por qualquer meio que seja. Hoje, já se sabe, não se deve dizer negro, mas afro-descendente; não se deve dizer cego, mas deficiente visual. E por aí vai. Recentemente a Editora Globo mudou o nome do livro O Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie, como foi originalmente chamado no Reino Unido (Ten Little Nigers), para E não Sobrou Nenhum (And Then There Were None), como é chamado, timoratamente, nos Estados Unidos. Outro dia fez-se um escarcéu terrível a respeito de Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, porque no livro, segundo os especialistas, o autor usa “estereótipos raciais”. E acabo de ler que o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária - CONAR vai julgar suposta prática de racismo contida na propaganda da nova embalagem do azeite Galo, que diz “O nosso azeite é rico. O vidro escuro é o segurança”. “Escuro” e “segurança”, entenderam? As minorias agora, como que libertadas de um cárcere milenar, imposto por uma maioria desalmada, parecem sedentas de vingança e, vociferantes, cobram, exigem, mandam. Espanta-me que o MPF dedique-se com inusitado ardor – em prejuízo do trabalho sério, necessário, indispensável que lhe cabe institucionalmente desempenhar – a cuidar de picuinhas e de bobajadas, que mais parecem coisas de desocupados. Espanta-me também que pessoas cultas, ou assim ditas (a cultura nem sempre se faz acompanhar pelo bom-senso) defendam estes e outros disparates, como um de que eu mesmo fui testemunha: discutia-se se num projeto de regulamentação deveriam constar as expressões “diretor(a)”, “coordenador(a)”, etc., pois os defensores de tal despropósito acreditavam que manter a denominação do cargo apenas no masculino era uma afronta ao sexo feminino. (O pior é que os defensores da ideia estapafúrdia saíram vencedores, e o texto foi publicado assim, com esses antipáticos “(a)” depois de cada cargo. Se a ideia grassa, não é impossível que algum senador ou senadora, deputado ou deputada, apresente projeto de emenda à Constituição com o fim de corrigir a histórica opressão masculina, e que dentro em pouco estejamos lendo disparates como “Cada Senador(a) será eleito com dois suplentes”, ou “O número de Deputados(as) à Assembléia Legislativa corresponderá [...]”, etc.) Me parece que é péssima notícia, verdadeiramente reveladora dos tempos bobos em que vivemos, que tenhamos que discutir se é preciso ou não incluir numa obra literária, como no caso de Caçadas de Pedrinho, explicações (advertências, na verdade) para os alunos, dizendo-lhes que Monteiro Lobato vivia numa época em que era comum pensar que o negro, etc. etc., ou que tentemos suprimir de um dicionário de reconhecido valor expressões consagradas pelo uso (tenho até medo de usar a expressão “expressão consagrada” – perdoem-me a repetição –, pois posso ser acusado de dizer que todo mundo concorda com ela, o que não é verdadeiro), a pretexto de que tais expressões possam ser consideradas ofensivas ou preconceituosas, ou ainda que o CONAR, adiantando-se a algum eventual clamor da população negra, julgue se a propaganda do azeite Galo é ofensiva ao relacionar o emprego de segurança com a cor escura ou negra, insinuando com isso, maliciosamente, que apenas os negros foram talhados para o emprego (como se ser segurança fosse o pior castigo do mundo). Que precisemos discutir estes assuntos, e pior, que discordemos tanto ao discuti-los, é uma triste indicação de nossa superficialidade intelectual. São mesmo tempos bobos, estes em que vivemos.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O NOSSO McSORLEY'S

O Bar do Paulo tinha tudo para ser o nosso McSorley's. (Para quem não sabe, o McSorley's fica no East Village, na Sétima Rua – sim, na Sétima Rua e não na Sétima Avenida –, em Nova Iorque, e seu nome completo é McSorley's Old Ale House. O old aqui é bem verdadeiro: o McSorley's foi fundado em 1854, numa época em que se jogava serragem no chão para absorver, presumo, as cuspidas dos pinguços. Até hoje o McSorley's conserva a mesma cara, descontada a serragem, que tinha no século dezenove.) O Bar do Paulo, pois, que nem é tão antigo, bem poderia ter sido o nosso McSorley's, o McSorley's de Arapiraca. Mas como no Brasil (e mais acentuadamente em Alagoas) as coisas antigas são tratadas como trastes, como meros estorvos (ninguém as vê como tradições, como patrimônio), aconteceu com ele o que era de se esperar: foi ficando cada vez mais decadente, cada vez mais velho (utilizo a palavra “velho”, aqui, como sinônimo de mal cuidado) até, finalmente, fechar. Antes disso, nas duas últimas décadas, tinham sido realizados alguns eventos promocionais, nunca muito bem-sucedidos, com o objetivo de angariar fundos para fazer reformas no bar: seu Paulo, o proprietário, não era o empresário típico, desses que pensam números, de modo que costumava malbaratar seus minguados lucros não se sabe exatamente como, e nunca lhe sobrava dinheiro para fazê-las (as reformas) ele mesmo. Dia desses, porém, me disseram que tinham visto o bar aberto, e imediatamente imaginei lá dentro uns espectros cabisbaixos, movendo-se lentos sob luzes mortiças, melancolicamente embalados por alguma canção de Janes Joplin. Deve ter sido um engano, pensei, isso de terem visto o Bar do Paulo aberto. Eu mesmo tinha passado diante dele uma noite de sábado, não muito tempo atrás (as noites de sábado, por sinal, eram as melhores, as mais concorridas) e o vi como realmente está: fechado. A pintura da fachada, de uma cor indefinida, pálida, estava descascando; as portas, as pesadas portas de ferro, que recordo pintadas de branco ou amarelo, estavam enferrujadas. Dobrei a esquina, devagar (estava de carro), tentando vislumbrar através das janelas sujas algum movimento lá dentro. O Bar do Paulo, pelo que me consta, efetivamente morreu. Seu Paulo, que já era velho quando eu era criança, ainda vive, e espero, sinceramente, que esteja bem. Mas me disseram que anda triste, talvez depressivo. E não é para menos: seu Paulo foi o anfitrião feliz de pelo menos duas gerações, a dos meus pais e a minha. Testemunhou muita coisa: brigas inusitadas, conspirações políticas, altas traições, comemorações patéticas. Não me surpreende que agora, sem bar e sem fregueses, tenha sido tomado por uma nostálgica melancolia. Eu e meus amigos chegamos a ficar amigos do seu Paulo, que sempre nos recebia com um sorriso no rosto. Nos últimos anos, costumávamos nos lembrar de uma noite de véspera de Natal em que protagonizamos uma das madrugadas mais delirantes da história do bar. Sempre que conversávamos (não era raro que o seu Paulo sentasse à mesa conosco), lembrávamos daquela noite, que começou despretensiosa, sem cerveja (seu Paulo não imaginava que a madrugada do dia 25 de dezembro pudesse ser promissora), e se estendeu até o raiar do dia, com grande vozerio e barulho de risos (do nada apareceram cervejas e Montilas, que prontamente cumpriram seu papel), assustando até mesmo os mais empedernidos bebedores (conta-se que dois pinguços, passando na frente do bar numa hora em que o céu já começava a se tingir de cinza, cogitaram de juntar-se à farra. Quem os viu conta que um falou para o outro: “Vamos entrar?”. E o outro teria respondido, vivamente horrorizado: “Você está louco? Isso aí é barra pesada!”) Numa das últimas vezes em que visitei o bar, lá se vão uns seis ou sete anos, seu Paulo falou mais uma vez daquela noite, e desta vez com lágrimas nos olhos (vi as lágrimas, juro). Perguntou das fotos (alguém, do nada, tinha aparecido com uma câmera) e queixou-se de que ninguém tivesse dado a ele, como lhe fora prometido, a foto daquela noite: aquela em que posamos todos, quinze ou vinte pessoas, o seu Paulo incluído, como um time de futebol, nos fundos do bar. Eu mesmo creio que nunca vi a foto revelada, e duvido que se a visse não tivesse ficado demasiado saudoso do que fomos, daquela época e do próprio bar, o nosso McSorley's.  

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A NARCISA E O NEYMAR

Fuçando na Internet durante a tarde preguiçosa, leio que a socialite Narcisa Tamborindeguy até ontem não sabia quem era o Neymar. Ao ver um burburinho no camarote, de onde naturalmente assistia ao desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, ela teria perguntado: “O que é que está havendo?”, ao que teriam respondido: “É o Neymar”. (Vinha chegando, o rapaz.) E ela, para assombro dos que estavam ao redor: “E quem é Neymar?”. Quando responderam que era “um jogador prodígio, com fama internacional e cabelo diferente”, aí ela correu para tirar fotos com ele. Imediatamente me lembrei da grã-fina das narinas de cadáver, do Nelson Rodrigues, que, levada ao estádio para assistir a uma partida de futebol, não sabia quem era a bola. Você não é obrigada a conhecer o Neymar, Narcisa, nem ninguém é obrigado a se interessar por futebol. Na verdade, considerei uma boa notícia, nesse mundo em que se sabe tudo, e pior, em que se tem que saber tudo, que você não conhecesse o Neymar. Pena que agora você já conhece.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

DOMINGO DE CARNAVAL

É um silêncio quase perfeito, o deste domingo de carnaval. Mais cedo cheguei à janela do meu quarto e vi árvores estáticas e carros como que abandonados há séculos. Pouco depois, parado à janela da cozinha, olhando o cruzamento vazio, ouvi um som estranho, incomum: olhei à direita e vi que um grupo de skatistas se aproximava lentamente. Dois, três, cinco, dez skatistas passaram sob minha janela, seguros, soberanos, surreais. É claro que o silêncio não é absoluto: há o eco distante de vozes; há carros que passam muito longe; há um cachorro que late numa casa de esquina. De vez em quando um insatisfeito, algum folião frustrado (imagino que seus amigos o tenham abandonado), sopra uma vuvuzela que mais parece uma corneta de Jericó, e um único som agudo e desavergonhado, impertinente, mal-educado, rompe o quase imaculado silêncio da tarde. Nada disso, porém, retira à tarde de domingo seu ar estático. Parado à janela, tenho a impressão de que tudo está em suspenso. Parece quase impossível que o mundo inteiro não seja tão silencioso quanto esta rua.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

CORAÇÕES ADOLESCENTES

Não nos preocupávamos com nada. Nossa vida era um futuro absolutamente garantido: felicidade e realização. Não que achássemos que seríamos ricos ou bem sucedidos. Não pensávamos nisso. Achávamos, isso sim, que saberíamos o que fazer quando o futuro chegasse. E por isso vivíamos somente o presente: nossa vida era o nosso almoço de daqui a pouco, o que faríamos à noite, os encontros prometidos, os beijos ansiados. Éramos tão fortes, tão poderosos! Parecia haver, no fundo dos nossos corações, uma promessa plantada pela vida: não temam, o mundo pertence a vocês. Mal sabíamos que estas eram promessas de nós para nós mesmos. A vida não nos prometia nada. Éramos nós, ansiosos, jovens, sôfregos e sonhadores, eram os nossos corações adolescentes que fantasiavam. 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

FESTA

Ele está sentado, olhando as próprias pernas. Como são finas e sem pêlos as minhas pernas, ele pensa. Suas mãos descansam sobre o assento do sofá. Sua filha passa para lá e para cá, dando os últimos retoques na casa. Daqui a pouco vão chegar umas pessoas que eu não conheço, e outros que conheço pouco, e uns poucos que conheço bem, e todos, sem exceção, primeiro vão me olhar de longe, mais ou menos como se não tivessem me visto, pensando no que vão dizer. Cumprimentarão minha filha e meu genro e perguntarão pelo meu neto, e ouvirão que ele está no quintal, brincando. Depois, com a ideia mais ou menos formada (Vamos abordá-lo assim ou assado), vão se dirigir a mim com dois tipos de cara, as únicas possíveis: a compungida mas falsamente reconfortadora e a reconfortadora claramente compungida. Alguns mencionarão o assunto, dirão que esta é a vontade de Deus; outros não dirão nada; quer dizer, dirão amenidades. Queria estar em casa, sozinho. De que modo a casa fica sem mim? Tenho pena da televisão desligada, das janelas fechadas, da cama forrada. A filha passa esbaforida com um conjunto de travessas e diz, sem parar: Vou buscar seu neto, papai; vou trazer ele aqui pra vocês brincarem. Ele pensa: Não quero brincar com meu neto. Não tenho nada a dizer a ele. Sente um súbito cansaço da festa que ainda não começou. Vai ser muito ruim mais tarde, ao encontrar tudo às escuras. Não seria tão ruim se já estivesse em casa, vendo a noite cair sobre os móveis. O ruim, ruim mesmo, é chegar em casa e encontrar tudo às escuras. Abrirei o portão enquanto minha filha espera dentro do carro, sentada no banco do passageiro, como sempre. O genro, ao volante, parecerá impaciente. E o neto, como sempre, dormirá no banco de trás. Vai ser tão difícil. E suspira, resignado.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O ANTÔNIO, O MARCOS E EU

Ela me chama de Seu Antônio. Hoje de manhã, quando a encontrei, me disse: “Bom dia, Seu Antônio!”, e eu, que não a corrigi logo no começo, que já não vejo como corrigi-la, respondi, simplesmente: “Bom dia, Rosa”. (Rosa é mesmo seu nome, registre-se.) Só que hoje, quando a cumprimentei, aconteceu algo estranho: vi que ela me olhava com um ar divertido. Pensei: será que ela sabe que o meu nome não é Antônio? Será que ela me chama assim só para ver até quando eu resisto? Eu também sou Marcos, aliás. Noutro prédio que frequento, o porteiro me conhece como Marcos. De onde ele tirou esse nome eu não sei, mas o fato é que sempre me cumprimenta assim: Bom dia, Marcos!, ou Boa Noite, Marcos!, e eu nunca o corrijo. (E olha que eu sei, desde o começo, que o nome dele é Damião.) Ser chamado por um nome que não é o seu, se você não se irrita, é algo curioso. A despeito de uma ligeira sensação de alheamento, eu me sinto como se participasse de uma brincadeira: Ahá!, meu nome não é esse, velho! A sensação de alheamento, por outro lado, explica-se da seguinte maneira: é como se eu, naquele momento, fosse outra pessoa. Como seria esse Antônio?, penso, se eu fosse mesmo o Antônio? Seria igual a mim? E esse Marcos, será que seria eu mesmo? E o mais estranho: sem mim, como o Luiz se viraria? Bem. Talvez alguém deva avisar à Rosa e ao Damião que eu não sou quem eles pensam que eu sou. Eu sou o de sempre: a mesma cara, o mesmo corpo, a mesma voz. Só não sou os nomes que eles pregaram em mim. Quase posso imaginar a decepção deles quando souberem que o Marcos, que o Antônio não existe. Quase posso ouvi-los dizer: Puxa, não é o Marcos? Não é o Antônio? (Como se o Marcos ou o Antônio tivessem deixado de existir de uma hora para outra, e isso fosse uma perda terrível.) E, legitimamente irritados, quase posso ouvi-los perguntar: Por que ele não nos avisou?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

CONSTATAÇÃO

“Quando somos jovens, todo mundo de mais de trinta anos parece ser de meia-idade, e todo mundo de mais de cinquenta parece ser antigo. E o tempo, à medida que passa, apenas confirma que não estamos muito equivocados em pensar assim. As pequenas diferenças de idade, tão cruciais e tão importantes quando somos jovens, apagam-se. Terminamos pertencendo a uma mesma categoria: a dos não-jovens.” A frase é de Julian Barnes, e a encontrei em The Sense of an Ending. Trata-se de um livro fininho que, à primeira vista, não parece ter a densidade que efetivamente tem. Faço a citação apenas para dizer que já havia pensado nessas coisas antes, e que até já havia tentado colocá-las no papel (não que eu tenha cinquenta anos: não cheguei lá ainda), mas nunca havia conseguido captar a ideia (mais do que a ideia, a sensação) de modo tão preciso quanto Julian Barnes. Não é de se estranhar: Julian Barnes é Julian Barnes, e eu sou eu.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

GRACILIANO E BERNHARD

As bibliotecas têm dessas coisas: colocam lado a lado escritores que, de outro modo, nunca se encontrariam. Agora mesmo acabei de receber pelos correios uma encomenda que fiz na Cultura: Graciliano: Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos, e Meus Prêmios, de Thomas Bernhard. Descontado o fato de que Graciliano: Retrato Fragmentado é de Ricardo Ramos, filho de Graciliano, o que importa dizer é o seguinte: o que pensaria Graciliano de Thomas Bernhard, ou vice-versa? Quase não tenho dúvida de que Graciliano reconheceria o valor dos períodos tortuosos, das repetições, de Bernhard. Certamente Bernhard admiraria o rigor e a precisão de Graciliano. Os livros estão aqui à minha frente, um ao lado do outro. Impensável relacioná-los de outra maneira. É verdade que os dois escritores foram contemporâneos durante breves anos, mas não os suficientes para que se conhecessem. Talvez, mas apenas talvez (a possibilidade é tão remota que chega a ser desalentadora), Thomas Bernhard tenha passado os olhos, apenas isso, pelo nome de Graciliano numa revista literária qualquer. Graciliano era grande, Bernhard, grande. Você talvez não tenha sabido, mas era. Você teria gostado de lê-lo. Tal como você, era avesso à hipocrisia. Um grande escritor, avesso à hipocrisia e à bajulação. Fico feliz de apresentá-los. Fico feliz de reuni-los sob o meu teto, na companhia de outros amigos. Passemos à biblioteca.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

SÓ POR CAUSA DE UMA FOTO

Vejo uma foto do pequeno Totó, o personagem principal do filme Cinema Paradiso. Ele segura diante dos olhos, na vertical, um pedaço de rolo de filme. Em seu rosto brilha um sorriso de pura felicidade, a felicidade de quem descobriu uma maravilha. Em poucos filmes, aliás, vi uma interpretação tão espontânea quanto a de Salvatore Cascio, o ator, que, por coincidência, tem o mesmo nome do personagem (Totó é o apelido de Salvatore). Observo seu sorriso aberto e seus dentinhos tortos, e comovo-me com sua orelhinha de abano estilo Topo Gigio. (Que pena, penso agora, que Totó tenha crescido: hoje deve ser um homem feito.) Leio que Salvatore, o ator, foi escolhido entre as crianças da cidade de Giancaldo, hoje chamada de Pallazo Adriano, em Palermo. Destacou-se por decorar com facilidade as falas e a marcação. Mas volto à imagem. Totó está olhando um pedaço de rolo de filme, um sorriso estampado no rosto. Veste um terno cinza, amarfanhado. Não há sinal de gravata. Um colete projeta-se sob a lapela. Em que lugar se passa a cena? Ao fundo vê-se uma parede bege, irregular. Atrás de Totó vê-se o batente de uma porta. Pode ser que esteja em sua própria casa (se bem me lembro, Totó havia levado uns pedaços de filme para casa). Pode ser, também, que esteja na sala de projeção de Alfredo. Tenho uma súbita vontade de ver o filme novamente, pela quarta ou quinta vez. Busco mais fotos na internet: vejo Salvatore (o personagem) adulto, de cabelos brancos, e vejo Alfredo, de óculos escuros, depois do acidente. Vejo a cidade de Giancaldo. 


Esta última foto, aliás, é particularmente encantadora: tirada talvez de cima do campanário da igreja, mostra a praça central (na verdade a praça é somente uma espécie de fonte), e, ao seu redor, a fauna da cidade: gente recolhendo água, um cavalo puxando uma carroça, três bois, um cachorro – e, à direita, no canto inferior, próximo ao cachorro, um homem encostado à parede de uma casa. É uma bela foto. Tem os elementos de simplicidade que despertam em mim um estranho desejo de partir, coisa que de vez em quando sinto. Eu moraria num lugar assim. Escolheria aquele sobrado, quase no centro da foto. Um sobrado de três andares, com toldos marrons protegendo seus minúsculos balcões superiores. Eu moraria ali, no terceiro andar, onde está aquele primeiro balcão, da esquerda para a direita. De manhã, depois de me levantar, iria até a varanda para saudar o dia. Debruçado sobre o parapeito, aspiraria a longos haustos, e, sem pressa, passaria os olhos pelos velhos telhados. Sinto agora uma estranha nostalgia: uma nostalgia do que não tive – a nostalgia de um lugar em que não vivi. Sinto na garganta um leve travo de tristeza: a tristeza pelo que não foi nem será. Olhando essa foto, tirada assim do alto, sinto-me como se estivesse me despedindo de Giancaldo. Tenho vontade de acenar para as pessoas em volta da fonte, para o homem encostado na parede. Até as sombras projetadas no chão me comovem. E eu continuo me afastando, os olhos fixos naquele quarto que nunca foi meu, nos telhados velhos, nos montes a distância. E tudo isso só por causa de uma foto.