quarta-feira, 15 de agosto de 2012
O QUARTINHO DA CAVEIRA
Nem
lembro exatamente por que nos ameaçavam, que malfeitorias cometíamos
ou podíamos cometer. Creio que nos ameaçavam porque estudávamos
pouco, ou porque brigávamos, ou porque demorávamos demais no
recreio. (A nossa vida era uma vida de medos, de ameaças pendentes
de execução.) Sei, porém, que para alguns de nós – os mais
inocentes, pelo menos –, as ameças surtiam efeito: não brigávamos
nem na sala nem no recreio (mas brigávamos na porta do colégio),
respeitávamos todos os horários e sobretudo estudávamos como
loucos: honrávamos, enfim, um nebuloso código escolar, cheio de
regras invisíveis. Para os que não o fizessem, ei-lo, o pior dos
castigos (havia outros, menos terríficos mas mais dolorosos, que às
vezes ainda assim preferíamos: a bofetada pura e simples ou a temida
palmatória), ei-lo, como eu dizia, o pior dos castigos: o quartinho
da caveira. A bem da verdade, não era exatamente um quartinho, mas
sua representação: uma porta, pintada de verde, que ninguém, pelo
que me consta, nunca tinha visto aberta (só a tinham visto aberta os
infelizes engolidos por aquela boca escura e sem dentes, isto é, os
infelizes que tinham sido jogados no quartinho, e que, dizia-se,
saíam contando horrores da experiência). E nós, do pátio interno,
nós a víamos, fechada e ameaçadora; e a víamos também quando
passávamos por ela, em direção às nossas salas; e a víamos, a
depender da posição, através das janelas, enquanto assistíamos às
aulas. No quartinho, claro, trancavam os meninos desobedientes, e
dele diziam que era estreito e escuro. E que tinha uma caveira,
evidentemente. Mas por que uma caveira? Que sádico educador ideara
tão cruel instrumento de castigo? Ninguém sabia. Hoje, ao recordar
o período, acho provável que um dia alguém tenha visto a porta
entreaberta e, dentro do quartinho, pendurado como um paletó velho,
um esqueleto inofensivo, desses de plástico, desses que se usam em
aulas de anatomia. Talvez esse alguém, algum colega mais
imaginativo, tenha espalhado a notícia da caveira, que virou lenda e
atravessou duas ou três gerações. O fato é que deixei o colégio
sem saber se realmente havia uma caveira atrás da porta verde. Só
depois que cresci (não sei quanto tempo depois) foi que me disseram
que o quartinho da caveira nunca tinha abrigado caveira nenhuma (a
não ser, quem sabe, a eventual caveira de plástico, solitária e
desvalida) e sim os instrumentos da banda da escola, por sinal uma
das melhores da cidade. Surdos, pratos, triângulos, bumbos – isso
era tudo o que havia dentro do quartinho. Mas por que ninguém tratou
de pôr cobro à ameaça, ao medo constante? Não bastavam os
safanões e a palmatória? Por que nenhum dos meus colegas – vários
deles tocavam na banda e sem dúvida tinham visto os instrumentos lá
dentro do quarto – nunca disse a verdade? Talvez agora, à
distância, eu exagere o efeito da caveira: não creio que ela tenha
chegado a me tirar o sono. Mas ela sem dúvida nos inquietava (isto
é, sua mera possibilidade inquietava-nos) quando do pátio, ou
através das janelas das nossas salas, mirávamos a medo aquela boca
que a qualquer momento podia abrir-se e nos tragar.
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