sexta-feira, 14 de setembro de 2012

ACREDITAR

Vi esta tarde um conhecido meu, um desses sujeitos engajados na política. Se não me engano é um humilde filiado ao Partido. Vinha comendo amendoins, de cabeça baixa, e trazia colado ao peito o adesivo de um candidato qualquer. Ele ainda acredita, pensei. Votou no Lula, nas duas eleições. Votou na Dilma. Consta que no começo era grande admirador do José Dirceu e padeceu muitas noites de insônia quando o viu envolvido no mensalão. O sol levanta-se e se põe, passam-se os dias, os meses e os anos – e o homem continua acreditando. Vinha comendo amendoins, pacificamente, com seu mais novo candidato colado ao peito. Vi-o limpar a mão na calça, sem a mais remota dúvida. Ele ainda acredita, pensei, estupefato.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

MELHOR NÃO OLHAR

Tenho um carinho especial por cachorros. Vira-latas, de preferência. Hoje vi um destes tentando atravessar a avenida movimentada (vemos tantos todos os dias que quase não os percebemos: são como postes, como carros, como muros). Passei por ele, dei uma olhada pelo retrovisor e segui adiante, irremediavelmente cativado por sua expressão atenta e assustada. Notei seu rabo meio encolhido, suas orelhas levantadas, suas patas prontas para correr. Envolvia-o o zunzum dos carros. Tentei me tranquilizar pensando que os vira-latas já se acostumaram a esta circunstância moderna que é atravessar o sinal: já sabem a hora de correr, já sabem para onde olhar, distinguem o sinal verde do amarelo. Engano, claro. Por mais acostumados que estejam, são tão falíveis como nós, humanos, que nunca dominamos completamente uma situação. Pois bem. Passei por ele e dei uma olhada pelo retrovisor. Vi que estava indeciso. E preferi não olhar mais.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

TÃO SUJA

Nem bem começa a campanha eleitoral e vejo dezenas de fotos de candidatos, e dezenas de números e de slogans de candidatos. No deslocamento entre a minha casa e o meu trabalho vejo candidatos nos carros e nos outdoors: candidatos sorridentes, candidatos carrancudos, candidatos sozinhos, candidatos acompanhados. Candidatos, candidatos, candidatos. E como são grosseiros e indecentes os candidatos, e como suas expressões são torpes, e como seus olhos, e seus rostos escanhoados, e seus cavanhaques e barbas, e seus narizes, e seus sorrisos são obscenos! E como são feios os candidatos! Como são feios todos eles! E como são vazios seus slogans! E como são risíveis e indignos e mentirosos seus slogans! E como falam com desfaçatez, com cinismo e com desvergonha em progresso, em honestidade, em compromisso, em educação, em segurança, em saúde!... Arre, como está suja a cidade! Mais suja que o normal. Nossa cidade já de si tão suja, tão suja, tão suja. 

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O QUARTINHO DA CAVEIRA

Nem lembro exatamente por que nos ameaçavam, que malfeitorias cometíamos ou podíamos cometer. Creio que nos ameaçavam porque estudávamos pouco, ou porque brigávamos, ou porque demorávamos demais no recreio. (A nossa vida era uma vida de medos, de ameaças pendentes de execução.) Sei, porém, que para alguns de nós – os mais inocentes, pelo menos –, as ameças surtiam efeito: não brigávamos nem na sala nem no recreio (mas brigávamos na porta do colégio), respeitávamos todos os horários e sobretudo estudávamos como loucos: honrávamos, enfim, um nebuloso código escolar, cheio de regras invisíveis. Para os que não o fizessem, ei-lo, o pior dos castigos (havia outros, menos terríficos mas mais dolorosos, que às vezes ainda assim preferíamos: a bofetada pura e simples ou a temida palmatória), ei-lo, como eu dizia, o pior dos castigos: o quartinho da caveira. A bem da verdade, não era exatamente um quartinho, mas sua representação: uma porta, pintada de verde, que ninguém, pelo que me consta, nunca tinha visto aberta (só a tinham visto aberta os infelizes engolidos por aquela boca escura e sem dentes, isto é, os infelizes que tinham sido jogados no quartinho, e que, dizia-se, saíam contando horrores da experiência). E nós, do pátio interno, nós a víamos, fechada e ameaçadora; e a víamos também quando passávamos por ela, em direção às nossas salas; e a víamos, a depender da posição, através das janelas, enquanto assistíamos às aulas. No quartinho, claro, trancavam os meninos desobedientes, e dele diziam que era estreito e escuro. E que tinha uma caveira, evidentemente. Mas por que uma caveira? Que sádico educador ideara tão cruel instrumento de castigo? Ninguém sabia. Hoje, ao recordar o período, acho provável que um dia alguém tenha visto a porta entreaberta e, dentro do quartinho, pendurado como um paletó velho, um esqueleto inofensivo, desses de plástico, desses que se usam em aulas de anatomia. Talvez esse alguém, algum colega mais imaginativo, tenha espalhado a notícia da caveira, que virou lenda e atravessou duas ou três gerações. O fato é que deixei o colégio sem saber se realmente havia uma caveira atrás da porta verde. Só depois que cresci (não sei quanto tempo depois) foi que me disseram que o quartinho da caveira nunca tinha abrigado caveira nenhuma (a não ser, quem sabe, a eventual caveira de plástico, solitária e desvalida) e sim os instrumentos da banda da escola, por sinal uma das melhores da cidade. Surdos, pratos, triângulos, bumbos – isso era tudo o que havia dentro do quartinho. Mas por que ninguém tratou de pôr cobro à ameaça, ao medo constante? Não bastavam os safanões e a palmatória? Por que nenhum dos meus colegas – vários deles tocavam na banda e sem dúvida tinham visto os instrumentos lá dentro do quarto – nunca disse a verdade? Talvez agora, à distância, eu exagere o efeito da caveira: não creio que ela tenha chegado a me tirar o sono. Mas ela sem dúvida nos inquietava (isto é, sua mera possibilidade inquietava-nos) quando do pátio, ou através das janelas das nossas salas, mirávamos a medo aquela boca que a qualquer momento podia abrir-se e nos tragar.  

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

UMA FAMÍLIA

Hora do almoço, num restaurante. Os dois moleques chegam contrariados, talvez porque os pais não lhes satisfizeram os gostos. O galeguinho, que está de costas para mim, parece ser bem comportado: vejo-o mexer quietamente na orelha direita, como se estivesse distraído. Já o moreninho, que vejo de frente, faz caras e bocas de malandro, e vai-não-vem debruça-se sobre a mesa para falar com o irmão em tom conspiratório. O pai, alto e barrigudo, moreno, barba de três dias, calça social e chinelos, foi fazer os pratos com a mãe; antes mandou os moleques guardarem o lugar: diante deles, sobre a mesa, a bolsa da mãe, uma bolsa grande e mole, parece um animal morto. Os pais voltam com os pratos e todos começam a comer. A mãe é morena, tem os olhos grandes e expressivos, o nariz afilado; veste calça jeans e camiseta (e logo vejo que não é mãe: não usa aliança em nenhuma das mãos e é jovem e bonita, jovem demais para ser mãe dos moleques) e gosta de tatuagens: tem estrelas no ombro esquerdo e nos pés (por sob a mesa vejo seus belos pés calçados em escarpins). O pai é autoritário: resmunga, diz aos meninos o que devem e o que não devem fazer (ouvi-o dizer para o galeguinho, rosnando: “Tire os pés da cadeira!) e mantém um ar distante (os filhos, penso, são para ele duas coisas, duas sacolas que ele colocou nas cadeiras enquanto come). A madrasta (feio nome para uma moça tão bonita), por sua vez, parece amiga dos dois: conversa e sorri. Que fazem aqui?, me pergunto. De onde vêm? Que foi feito da mãe dos moleques? Será que os moleques gostam do pai? Será que respeitam a madrasta? Continuo observando-os, entre uma garfada e outra. A madrasta parece satisfeita: vejo-a piscar para o pai, não consigo imaginar por quê. Pouso os olhos nele: fixo-me em suas sandálias gastas, em seus calcanhares sujos; examino sua cara severa, sua barba negra, seus olhos duros... Que motivos ela tem para estar satisfeita? O moreninho come com preguiça, a cabeça apoiada na mão direita; o galeguinho pensa em colocar os pés na cadeira e súbito recorda a severa recomendação do pai. Termino de comer. Preciso voltar ao trabalho. Levanto-me e me afasto devagar. Deixo-os para trás. Provavelmente não tornarei a vê-los. A tarde é ensolarada, uma agradável tarde de agosto. Há uma leve melancolia nessa tarde clara. Provavelmente não tornarei a vê-los.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

SANTÍSSIMA PACIÊNCIA

Como hoje não é dia de nada (pelo menos de acordo com o site que acabei de consultar; amanhã é o dia do tintureiro; ontem foi o dia do selo e da amamentação), por que não instituir o dia 2 de agosto como o dia da paciência? Eu gostaria de ver na internet notícias (reportagens, artigos, sei lá) com o seguinte teor: “Hoje é o dia da paciência. Veja o que você pode fazer para ter ainda mais,” ou então “Cinco especialistas dão dicas de como aperfeiçoar a paciência”. Porque todo dia (ou quase) é dia de alguma coisa. A coisa chegou a tal ponto de despropósito que não me espantaria que houvesse o dia do pneu, o dia do cartaz, o dia do vaso sanitário, o dia do alfinete, o dia do virabrequim (as pessoas não sabem como o virabrequim é importante!), sem falar nos dias mais, digamos, abstratos: o dia do sentimento (só valem os sentimentos bons, é claro), o dia do suspiro (de alívio, bem entendido), o dia da contemplação (mas não no trabalho), o dia do sonho (“Especialistas ensinam como sonhar”), o dia do desapego (“Veja aqui como fazer para desapegar-se com eficiência”). O absurdo de alguns desses dias (pelo menos para mim, que sou ranzinza) chega a ser constrangedor: no dia do homem, que descobri existir este ano (como se fosse necessário um dia do homem, coitadinho: se a mulher tem um, por que o homem não pode ter?), no dia do homem, eu dizia, vi muito homem se cumprimentando e, o que é pior, vi muita mulher cumprimentando homem. E pior ainda: vi, não sem estupor, algumas pessoas virem me cumprimentar. Menos mal que foram poucas, pois nunca achei que merecesse ser cumprimentado por algo tão natural, tão genético, tão biológico (e, como tal, não escolhido) como o meu gênero (o mesmo raciocínio vale, aliás, para as mulheres, me perdoem as que fazem questão). A coisa é de um enorme absurdo, como já disse, mas também de uma hipocrisia deslavada: existe o dia da mulher e o dia do homem. Mas e o dia do homossexual? E o do transsexual? Bom, vi na internet que é o dia 28 de junho (parece que todos os grupos reunidos sob a sigla LGBT, se não me engano, têm direito a apenas um dia, o dia do Orgulho Gay). Ocorre, porém, que a data ainda não foi oficializada. Pelo menos não a vi em nenhuma das listas que consultei. Será que algum movimento subterrâneo impede a oficialização? Por falar nisso, quem oficializa as datas? Quais são as verdadeiramente oficiais e as meramente simbólicas? Cada grupo cria a sua e se encarrega de divulgá-la? Em sendo assim, eu e eu mesmo instituo hoje a minha: a partir de agora, oficialmente, o dia 2 de agosto é o dia da paciência. Pois é preciso ter muita, santíssima paciência, para aguentar estas bobagens.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

DONA GRACINHA

Ela parece cansada. Chega com os cabelos em desalinho. Vejo olheiras sob seus olhos. Está mais magra, sem dúvida. Que será que ela tem?, me pergunto. Será o marido, que é gordo e ciumento? É o marido, decido. Tem infernizado sua vida, o mau caráter. Ou será a filha? Pode ser. A filha, muito novinha ainda, tem andado doente, a bichinha. Não é a filha, concluo. Ela me cumprimenta, sorridente como sempre (“Bom dia, doutor”, e nunca diz o meu nome). Senta-se à mesa, levanta-se, vai até o frigobar, para diante dele e medita. Há uma garrafa de café sobre o frigobar. “Está quentinho, o café”, digo. E completo: “A dona Ivanilda trouxe agorinha mesmo”. Ela se volta para mim, o dedo indicador no queixo. Sorri e diz: “Pois é, estou decidindo”. E eu volto a trabalhar, constrangido porque agora ela sabe que eu a estou observando. Sinto-me culpado por forçá-la a tomar uma decisão. Ela finalmente se decide e volta à mesa sem o café. Puxa um processo, abre gavetas, liga o computador. Ei-la, estática, diante da tela, os cotovelos na mesa, o queixo apoiado nas mãos. Está mais magra, não há dúvida. Mas continua bela. É o marido, repito. É o miserável do marido que a inferniza o dia inteiro. A coitadinha nunca deu motivo para ele ter ciúmes. Ela suspira e começa a trabalhar. Ou melhor, a fingir que trabalha. Não a culpo. O marido, o maldito marido, barrigudo e preguiçoso (o preguiçoso é por minha conta, reconheço), não a deixa em paz. Agora mesmo, à distância, monopoliza os pensamentos dela. A sombra do maldito marido gordo a persegue. “Dona Gracinha”, eu digo, “a senhora está com algum problema?” Ela tira os olhos do computador e se volta para mim, um sorriso luminoso no rosto. “Não, doutor, de jeito nenhum”. É discreta, mas seu sorriso não me engana. Eu saberia valorizar esse sorriso, penso, enquanto a observo distraída diante da tela do computador. 

FODA

Tem a história da primeira vez em que ouvi a palavra foda. Estávamos no quintal da minha casa. Era de manhã. (Ou seria no final da tarde? Lembro de tantas manhãs luminosas na minha infância... acabo pensando que tudo o que me aconteceu naquela época aconteceu de manhã. Mas agora acho que era no final da tarde. Tenho certeza, aliás, de que era no final da tarde.) Estávamos, pois, eu e um amigo mais velho, consertando minha bicicleta no quintal da minha casa. Mais um parêntese: não sei se é certo dizer que ele era meu amigo. Amigo é palavra delicada, de aplicação restrita, que não sei se se encaixa bem nesse caso. É sabido que as amizades infantis se travam normalmente entre pessoas da mesma idade. E ele era, como eu disse, mais velho do que eu. Eu tinha, sei lá, sete ou oito anos, e ele tinha uns quinze. Não era meu amigo, portanto: seu universo era muito diferente do meu; suas aspirações, suas experiências, seus gostos eram muito diferentes dos meus. Nem sei exatamente por que nossos caminhos se cruzaram; talvez porque morássemos perto um do outro. Mas não era mesmo meu amigo, pois logo nossas vidas seguiram caminhos diferentes. Mas volto à história: estávamos consertando minha bicicleta no quintal da minha casa e era um final de tarde. Lembro bem da bicicleta virada de ponta-cabeça, o guidão e o selim apoiados no chão de cimento; lembro das rodas livres, girantes. Não sei, não lembro exatamente o que tentávamos consertar, só sei que passamos boa parte da tarde empenhados em nosso mister... até que, depois de algumas (ou muitas) tentativas, finalmente conseguimos. E então, entusiasmado, ele disse uma frase incrível: “Ficou foda!” Meus olhos devem ter brilhado. Talvez naquela época, mesmo sem saber, eu já gostasse de palavras. De modo que meus olhos devem ter brilhado. “Foda?”, acho que perguntei. E ele repetiu: “É, ficou foda!” E eu entendi que tinha ficado muito bom, bacana, legal, joia. Tenho absoluta certeza de que não perguntei sobre outros possíveis significados; contentei-me com esse primeiro, que tinha entendido suficientemente bem. A coisa seguinte de que me lembro é de nos despedirmos à porta da minha casa e de eu ter pedido para ele repetir a palavra, que na minha voz – lástima – não parecia tão engraçada, nem tão sonora. E ele repetiu, satisfeito (e malicioso, pois tinha compreendido que eu não sabia exatamente o que significava foda): “É foda!” Foda. Que palavra bonita!, eu repetia, fascinado. A história poderia acabar aqui. Afinal, foi a história da primeira vez em que ouvi a palavra foda. Mas ela tem um prolongamento. À noite, no jantar, a propósito não sei do quê, comentei, entusiasmado: “É foda!”, com exclamação e tudo. Imediatamente atraí todos os olhares da família. Naquela mesma noite (ainda na mesa, na verdade) meus pais me explicaram que a palavra não era bonita, que na verdade era feia, muito feia. Talvez tenha sido essa a primeira ocasião (pelo menos é a primeira de que tenho perfeita lembrança) em que eu descobri que nem sempre as palavras valem pelo que soam, e que nem todas são tão inocentes quanto parecem. Bem. Ainda hoje ninguém me tira da cabeça que “foda” é uma palavra eufônica, sonora, simpática, divertida. Se me constranjo às vezes quando a ouço (há pessoas que a pronunciam em ambientes, digamos, pouco propícios) é só porque há décadas a sociedade vem me dizendo que é feia, feia, feia. Fica aqui a minha defesa da palavra (na circunstância certa, e com seu caráter de alegria, de diversão). Fica aqui também, por sinal, a minha defesa do ato. Se for consentido e responsável, e igualmente alegre, divertido.

terça-feira, 24 de julho de 2012

SANGUE DE BARATA

Fraco, absolutamente fraco. Se me pegasse, se me batesse; se se levantasse dessa cadeira imediatamente e me perguntasse onde eu estava e com quem; se dissesse que tem vergonha de mim e mais do que vergonha, nojo; se, enfim, mostrasse que tem sangue de verdade, como os outros homens, e não sangue de barata; se não abaixasse a cabeça, se não assumisse uma atitude que já sei exatamente qual é desde que começo a subir as escadas, desde que, aliás, abro a porta de casa, e na verdade desde muito antes: desde que saio de casa e digo que vou demorar.... Mas não. Não vai fazer nada disso. Vai fazer a mesma coisa de sempre: vai sorrir (não sei por que também sorrio; sorrio por pena, acho; sorrio por convenção, para tornar menos aguda a tristeza do nosso convívio). Trocaremos palavras amenas e então irei para o meu quarto. Ele ficará à janela, como sempre. E mais tarde, à noite, na cama, vai me desejar boa-noite, um boa-noite triste, como se me culpasse (ou pior, como se se desculpasse). E no dia seguinte, de manhã, vai me dar bom-dia, como todos os dias. Bom-dia! Como se nada tivesse acontecido ou como se quisesse acreditar que nada aconteceu.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

PASSARINHO VERDE

Não era a primeira vez nem seria a última. Quer dizer, seria. Ele estava no quarto de cima. Ela subiu as escadas devagar (ele estava digitando no computador quando ela abriu a porta; ele parou e ficou ouvindo) e quando chegou lá em cima (ele teve uma súbita vergonha de estar usando uma camisa branca velha, encardida, e a bermuda folgada, desbotada, de que ela tanto reclamava) sorriu daquele jeito de sempre: o sorriso de quem não quer sorrir, de quem sorri apenas por obrigação, e fala, e beija, ai, e vive sob o mesmo teto. Não é a primeira vez, pensou. Mas seria a última. Trocaram as palavras de sempre, que sabiam a ranço, cansaço e tristeza. Ela se afastou, foi para o quarto. Ele foi até a janela. Naquela mesma noite, enquanto ela dormisse, arrumaria a mala. Imaginou a sala escura, de madrugada. E teve certeza de que no dia seguinte, quando ela chegasse ao trabalho, as colegas diriam: "Você está diferente, parece que viu um passarinho verde".

sábado, 30 de junho de 2012

SÃO PEDRO

Já ninguém vem se hospedar na pousada. O frio e a chuva, mesmo poucos, espantaram os turistas que, nessa terra de muito sol e calor, querem apenas muito sol e calor. Choveu a noite inteira e agora estiou. É noite de São Pedro. Os carros passam, lentos, fazendo barulho nas poças. Sei que há fogueiras nas ruas, e fumaça. Da janela do meu prédio observo o pátio da pousada, onde uma noite vi turistas de várias nacionalidades reunidos num sarau animado e confuso. Agora, no pátio, varais estendidos de uma ponta a outra dos muros ostentam roupas e lençóis que oscilam lentos na brisa fria. Daqui a alguns meses os varais e as roupas e os lençóis desaparecerão. Daqui a alguns meses o pátio estará cheio de gente de novo. Daqui a alguns meses as vozes e o barulho da música (“É forró de pé-de-serra”, dizia a morena brasileira para o gringo que não entendia nada, que parecia contente só de olhar para ela, só de sonhar com a promessa daquela noite de sexta-feira) subirão novamente até a janela do meu quarto. Por enquanto há silêncio na pousada. Seus donos estão lá dentro, sem dúvida encolhidos diante da televisão. No pátio oscilam as roupas e os lençóis. Ao lado, para além do muro branco, os carros fazem barulho nas poças. 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

INFÂNCIA

Houve uma tarde em que minha mãe me levou ao colégio em que ela ensinava. Parece (creio que me disseram depois) que ela não tinha com quem me deixar em casa. Lembro que ela me sentou sobre o birô, lembro da imensa lousa verde, embutida na parede, e lembro também que fiz sucesso entre seus alunos. De mais nada me lembro, só disto: era de tarde, eu sentado no birô, a lousa verde enorme, as palavras carinhosas dos alunos. Vem-me à mente outra lembrança daquele colégio, sem dúvida de outra ocasião: estou à beira de uma quadra ao ar livre e meus pais estão ao meu lado, conversando com algum adulto. Observo outras crianças correndo pela quadra em trajetórias caóticas, desordenadas. Não posso dizer se ouvia seus gritos ou se os estou imaginando agora, para completar o quadro. Que coisa comovente é a infância! Hoje, quando vejo um bebezinho ou uma criança no colo do pai ou da mãe, perscrutando o mundo com olhos arregalados, comove-me pensar que sua memória guardará, desses momentos, imagens nebulosas, manchas coloridas, sons confusos. Minha mãe me sentou no birô, na sala de aula. Quantos anos eu tinha? Não faço a menor ideia. Talvez três ou quatro. Antes disso, do que me lembro? De borrões, de imagens vagas. Sequer posso garantir que aconteceram antes do episódio do colégio. Que coisas eu vi quando era ainda mais novo? Que coisas eu vi quando tinha seis meses? Quantas pessoas se debruçaram sobre mim, falando, cantando, me fazendo mimos, enquanto trocavam minhas fraldas? Que coisas eu vi – que rostos, que expressões – quando, ao colo dos meus pais, debruçado sobre seus ombros, meus olhos se surpreendiam com a diversidade do mundo?

quarta-feira, 13 de junho de 2012

DE UMA FOTO

Poucas vezes o famoso escritor parece à vontade diante das câmeras, e esta não é uma delas. Seus lábios estão crispados num arremedo de sorriso (só a convenção indica que sorri) e seus olhos, embora benévolos, pacientes ou resignados, não disfarçam seu desconforto. Sorri, o famoso escritor, porque nessas circunstâncias parece que é de bom tom sorrir. Nota-se, porém, que seus olhos atravessam a câmera, o fotógrafo e o leitor e perdem-se mais além, talvez em casa, talvez no sofá, talvez na cama. Sim, talvez gostasse de estar na cama agora o famoso escritor. É como se nesta foto, ainda mais que nas outras, não conseguisse disfarçar o constrangimento de o considerarem, que bobagem, um grande escritor. Está representando um papel, o famoso escritor, e sente-se canastrão nesse papel, como, aliás, em qualquer outro em que o queiram colocar que não seja o seu próprio, o de escritor apenas, sem adjetivos.

terça-feira, 5 de junho de 2012

SONHO

Eu ouvia a voz dela no rádio e me apaixonava perdidamente. Por uma voz, eu me dizia, sozinho na madrugada insone, logo por uma voz, eu me dizia. E era uma voz de menina e de mulher, e eu imaginava um rosto suave como seda e eu imaginava uns cabelos suaves e frescos como uma noite de primavera e eu imaginava um sorriso de dentes perfeitos e me dizia, irremediavelmente apaixonado ou me apaixonando irremediavelmente, eu me dizia, Quem será, quem será, e esperava que o locutor, cujo nome eu não sabia, esperava que o locutor mencionasse o nome dela, ou que ela mesma, como a gente costuma fazer, dissesse algo do tipo, Então minha mãe me disse, Laura (ou Maria ou Beatriz ou Luisa), a vida é dura (a mãe dela estava dizendo), a vida é dura e você tem que seguir em frente. Porque ela estava justamente falando da vida, contando suas histórias com tanta graça, com uma voz tão doce. Mas nem ela nem o locutor disseram nome nenhum, nada, e eu me pus a imaginar que os outros ouvintes, se é que havia outros ouvintes, sabiam seu nome, e eu me pus a imaginar que sairia perguntando para os meus amigos, primeiro os amigos e depois os desconhecidos, se eles tinham ouvido a entrevista da madrugada do dia tal naquela rádio obscura cujo nome eu não conhecia nem a frequência eu sabia qual era, pois estava escuro no meu quarto escuro enquanto eu mudava de faixa. Então eu perguntaria, não sei se fingindo um vago interesse ou se abertamente assumindo meu desespero apaixonado, eu perguntaria e eles responderiam que não, que não tinham ouvido a tal entrevista, e eu começaria a achar que tudo tinha sido um sonho, eu estava sonhando, eu não estava acordado mas sonhando, um sonho sem imagens, um sonho só de voz, sonhei que ouvia no rádio uma voz doce e suave, que falava da vida de um modo tão doce e tão terno, como uma amiga antiga falaria ao meu ouvido, e mesmo que não fosse sonho aquela voz na madrugada, mesmo assim eu não a ouviria jamais, eu jamais ouviria aquela voz novamente, pois ninguém sabe, ninguém conhece, ninguém nunca ouviu aquela entrevista.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

RUÍNAS

“Imagine estas ruínas à noite”, ela me diz. “Imagine estas colunas que hoje já não sustentam mais nada, estas três colunas, por exemplo. Não é verdade que já não sustentam mais nada, sustentam um friso inútil, que vem de lugar nenhum e vai dar em lugar nenhum. Imagine”, ela continua, sem me olhar, olhando para cima, para o friso ou para o céu azul, “imagine”, ela me diz, “a lua lá no alto e tudo isto aqui vazio, ninguém, nenhum destes turistas barulhentos”, e faz um gesto para incluir os turistas barulhentos sem olhá-los, “a lua lá no alto e o silêncio, o silêncio destas ruínas à noite, a luz tão branca da lua lançando sombras, já pensou”, ela me pergunta, “a lua lançando sombras no chão ao projetar-se sobre estas colunas, sobre estes arcos, a pedra fria, branca.” E eu olho ao redor, observo os turistas barulhentos, os turistas com suas bolsas a tiracolo, frenéticos em busca de mais uma foto, apontando, se acompanhados, aquela abóbada, aqueles arcos, aquelas janelas, apontando para o amigo ou esposa ou mãe ou pai, tão embasbacados como eles, aquelas magníficas ruínas, ou, se sozinhos, mirando absortos as ruínas, como que perdidos, como que procurando localizar-se, apenas mirando absortos aquela abóbada, aqueles arcos, aquelas janelas para as quais não precisam apontar pois não há quem siga seu dedo. Volto-me para ela. Continua falando mas eu já não a ouço, prefiro imaginar, como ela pediu, imagino aquilo tudo à noite, a luz branca da lua derramando-se fantasmagórica sobre as colunas, seriam coríntias aquelas colunas, seria aquilo um capitel, e logo imagino os turistas, os barulhentos turistas, tão felizes, tão pacificados, tão satisfeitos em sua superficialidade, imagino esses rebanhos escoando-se lentamente em direção aos hotéis, imagino-os já no banho, alguns deles já na cama, alguns deles já na cama, sim, e tudo isto aqui vazio e solitário e branco como a luz da lua. Ela silencia, olhando ao redor. Nós também voltaremos para o hotel, penso, voltaremos como os turistas barulhentos, voltaremos lentos, cansados, bovinos. Mas duvido que satisfeitos, duvido que pacificados.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

EPÍTOME

Essas mãos brancas (aliás, toda ela branca) de unhas sem esmalte (as unhas das mulheres muito brancas, quando não pintadas, traem um não sei quê de fragilidade), esses antebraços ossudos, de veias visíveis, esses cabelos quase brancos de tão loiros, de tão pálidos... Observo-a entretida, mexendo no celular, selecionando uma música, os fones de ouvido postos, os fones de ouvido sobre seus cabelos loiros como uma tiara. Vai ouvi-la agora, a música, enquanto o vagão não sai (estamos no metrô), vai começar a ouvi-la e o vagão sairá e ela ouvirá a música por dois, três minutos (a não ser que seja uma ópera, uma longa sinfonia, uma longuíssima balada) e depois, enquanto olha pela janela o mundo ficando para trás lá fora (na escuridão do metrô o mundo é apenas um borrão escuro e indistinto, os túneis que vão ficando para trás), ela esperará que outra música comece, aquela vai acabando, outra vai começar. Assim, distraída, parece que o seu futuro é a próxima música, ou a estação em que vai descer, ou o almoço de mais tarde, quando tiver resolvido as coisas que tem que resolver, quando tiver conversado com as pessoas com quem tem que conversar. Eu a observo sem ser observado (pelo menos não por ela) e penso que é reconfortante que esteja entretida e penso que o mundo todo, nesse momento, entrou nos eixos, como o vagão veloz sob a superfície, e que está tudo certo, o trabalho, a hora do almoço, tudo vai acontecer como tem que acontecer e não há por que se incomodar. Eu penso estas coisas (não penso bem mas sinto bem) e, olhando a loira tão loira e tão branca, olhando suas mãos brancas de veias ramificadas, seus antebraços magros, puros feixes de músculos (seus braços e seu tronco os recobre uma camiseta preta simples, sem estampas), penso que ela é a epítome deste momento, deste vagão inteiro, do mundo e do tempo aqui dentro contidos. Ela resume bem o que se passa com a outra loira ao seu lado, que com o olhar vago pensa talvez nos filhos ou no marido ou na mãe velhinha mas não se incomoda, e o que se passa com a negra que lê, concentrada, segurando-o com apenas uma mão, um livro grosso e sério e não se incomoda, e o que se passa com o casal bem atrás dela, parecem apaixonados e cansados e pensam, imagino, “Daqui a pouco chegaremos ao nosso destino e por enquanto é bem que nos separemos, por enquanto, só por enquanto” e não se incomodam. Ela, eu dizia, é a epítome desse momento, o elemento principal deste quadro, ela em primeiro plano e o resto de nós, meio borrados, em segundo, e é importante que permaneça assim, distraída, despreocupada, como se não houvesse nada no mundo a não ser a música que ouve e a música seguinte, ou no máximo o almoço de mais tarde.

terça-feira, 22 de maio de 2012

DO QUE SE SABE E DO QUE NÃO SE SABE

“Tantas coisas acontecem sem que ninguém saiba nem as recorde. De quase nada há registro, os pensamentos e movimentos fugazes, os planos e os desejos, a dúvida secreta, as fantasias, a crueldade e o insulto, as palavras ditas e ouvidas e depois negadas o mal entendidas ou tergiversadas, as promessas feitas e ignoradas, até mesmo por aqueles a quem se fizeram, tudo se esquece ou prescreve, o que se faz sozinho e não se anota e também quase tudo que não é solitário mas em companhia, quão pouco vai ficando de cada indivíduo, de que pouco há registro, e desse pouco que fica tanto se cala, e do que não se cala se recorda depois uma mínima parte, e durante pouco tempo, a memória individual não se transmite nem interessa ao que a recebe, que forja e tem a sua própria.”

(Javier Marías, Mañana en la batalla piensa en mí)

terça-feira, 15 de maio de 2012

NEOBUDISMO

Tenho imensa pena do cachorro fuçando o lixo: suas patinhas sujas, seu focinho úmido, suas costelas pronunciadas, dá tanta pena. Tenho imensa pena do gato cinza que vi no meio do cruzamento: desistiu de passar no último instante e agora não se decide a ir nem a voltar, os carros zunindo ao redor dele. Tenho imensa pena da menina que vi há pouco, olhando com olhos apaixonados o namorado que não lhe era indiferente nem nada e que na verdade não cheguei a ver: estava de costas para mim, e também ele me deu pena. Tenho imensa pena do bebê chorando: a mãe já vem, já vai chegar, mas mesmo assim dá tanta pena ver aqueles bracinhos, aquelas perninhas frenéticas. Tenho imensa pena do homem rico que vi descer do esplêndido carro e olhá-lo com orgulho – um carro! –, que imensa pena de sua barriga próspera. E tenho imensa pena de mim mesmo: como devo dar pena quando as pessoas me olham e se fixam em mim (comendo ou lendo ou esperando ou sorrindo)! Todo mundo, penso (ou melhor, o mundo todo), dá pena se a gente presta atenção, se a gente presta atenção ainda que seja por alguns instantes.

terça-feira, 8 de maio de 2012

LIXO

Cheguei à varanda quando ele já estava se levantando. Alcancei a ver que estava vestido de preto (uma camisa preta folgada) e que estava de bermuda. Vi pouca coisa mais: vi que tinha um saco plástico grande e que ao levantar-se jogava o saco, meio cheio ou meio vazio, sobre os ombros. Afastou-se sem olhar para trás, como que despeitado. Deixou para trás um pequeno monte de lixo: uns papéis, uns sacos plásticos, uma que outra coisa que não reconheci. Então, quando sumiu do meu campo de visão (perdeu-se atrás do prédio vizinho ao meu, à direita), olhei para o outro lado e vi mais lixo espalhado pelo chão, sobre a calçada, e, ainda mais para a esquerda, vi um monte grande de lixo, sacos plásticos azuis e pretos, sacos plásticos brancos, papéis e outras coisas indistinguíveis, que ele havia (dava para perceber) remexido depois de tirá-las do contêiner onde repousavam enquanto não passava o caminhão de lixo que iria recolhê-las. Uma bagunça. Olhei ao redor: vi um carro preto estacionado deste lado da calçada; vi uma casa com uma janela aberta e pela janela vi uma televisão ligada; vi luzes acesas nalgumas janelas dos prédios do outro quarteirão. E pensei que os porteiros, tanto o porteiro do meu prédio quanto o do prédio vizinho ao meu, certamente tinham visto quando ele, o cara da camisa preta folgada, remexera o lixo, quando ele bagunçara o lixo, quando ele, com desfaçatez, com desprezo (sim, eu estava certo de que ele agira com desprezo), esculhambara o que por si já é esculhambado, mas que nós, por não sei que pudor, tentamos ordenar. Nós recolhemos o nosso lixo em sacolas e os colocamos bem arrumadinhos na porta de nossas casas ou apartamentos ou em contêineres especiais (sempre arrumadinhos), nós pegamos o nosso lixo o levamos lá para fora, ou o colocamos ali no canto, à porta da escada de emergência do nosso prédio. Pegamos o lixo com a ponta dos dedos, como se não fosse nosso, como se não tivéssemos responsabilidade sobre ele, como se outra pessoa o houvesse entregado a nós e agora tivéssemos que nos desfazer dele, que povo porco. Pois ele, o cara da camisa preta folgada, com desfaçatez, com arrogância, esculhambara o que nós tínhamos tentado organizar. Esculhambara o nosso lixo e os porteiros nem para dar o alarme. Ele espalhara tudo na calçada e saíra sem olhar para trás, sem se preocupar. Ele, de alguma maneira, o infame, ele nos expusera.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

CRESCER OU NÃO CRESCER, EIS A QUESTÃO

Por dois motivos principais eu queria crescer. Primeiro para pegar as coisas que os meus pais ou os meus tios ou mesmo os estranhos (não sei com que autoridade estes últimos faziam isso) colocavam em cima da estante. Não foram poucas as vezes em que fiquei pregado ao chão, com carinha de inocente, olhando para o objeto do meu desejo lá no alto. Às vezes só via a pontinha dele: a pontinha de uma caixa, de um brinquedo confiscado, de um cristal, etc. (Saibam, oh, adultos, que poucas coisas traumatizam mais uma criança que o brinquedo ou o cristal no alto da estante.) O segundo motivo era sair sozinho de casa. Uma vez quis ir sozinho para a escola – até para a escola! – porque nesse dia, era um dia de chuva, os adultos discutiam quem ia me levar, empurrando uns para os outros a obrigação. Lembro de ter dito, resoluto: Vou sozinho, ao que me responderam silenciosamente com uns olhos que diziam Ora, por favor. Quando finalmente perceberam que eu acompanhava a discussão (afinal ela me dizia respeito), envergonharam-se, imagino, e se decidiram: alguém me levou. Mas havia outros motivos para que eu quisesse crescer (não tão importantes quanto aqueles, claro), cada um deles adequado a diferentes épocas de crescimento. Quando fiquei um pouquinho mais velho, por exemplo (velho, aqui, quer dizer nove ou dez anos), eu queria crescer para poder namorar, essa coisa de que todos falavam com urgência, emoção, segredo ou despeito. O fato é que os adultos me avisavam, sem proveito, que crescer não tinha retorno e que eu não gostaria tanto de ter crescido quando enfim crescesse. Não adianta: as crianças são teimosas por natureza e enquanto não sofrem na pele a experiência da realidade (afinal, nunca se sabe se os adultos estão dizendo a verdade ou não), fazem ouvidos moucos para conselhos, avisos e quejandos. Bem. Hoje alcanço as coisas no alto das estantes, saio sozinho quando quero e há muito percebi que os adultos tinham certa razão, mas só certa. Mas aí já era tarde: eu tinha crescido.   

sexta-feira, 27 de abril de 2012

FROR, PROFESSORA, FROR

Ontem, lendo o Livro de Crônicas do Lobo Antunes, dei com a seguinte frase: "O Nicolau era ruivo: existe sempre um ruivo em cada turma". E imediatamente me lembrei do João, que era ruivo e estudou comigo na quinta ou na sexta série (na época se dizia série e não ano) da Escola Estadual Adriano Jorge. Pois bem. O João, demais de ruivo (ou, pensando bem, galego) era silencioso e modesto como costumem ser as pessoas do interior. Silencioso e modesto, do tipo que sorri meio de lado, como que envergonhado, do tipo que fala olhando para baixo. O João, se pudesse, passaria despercebido. Que o deixassem quieto, esse era seu sonho. Mas os sonhos ou não se realizam ou nunca duram, esta é sua sina, e aconteceu que um dia a professora pediu ao João que fizesse uma leitura em voz alta para toda a classe. Já aí há complicação, sem dúvida. Esse negócio de se expor não é boa coisa. Mas o João começou bem a leitura, e eu notei que a professora balançava a cabeça para cima e para baixo, discretamente, num gesto de aprovação. E então o João se deparou com a palavra flor no meio do texto. Sem peias, sem duvidar de que estava fazendo o certo, disse: fror. A professora congelou e nós também, enquanto o João seguia adiante. Um momento, João, disse a professora. Leia a última frase, por favor. E o João leu a frase de novo e no meio dela disse novamente: fror. A professora não o deixou seguir adiante: É flor, João, flor. E ele, hesitante, como se não estivesse compreendendo: fror, fror. É flor, João, o certo é flor. E ele, como se se perguntasse o que estava fazendo de errado: fror, professora, fror. E nós caímos na gargalhada. Repita comigo, João: fu-lôr. E ele: fu-ror. E nós morríamos de rir. Não sabíamos então, nem a professora sabia (e quase ninguém sabe hoje), que as consoantes /l/ e /r/, chamadas de consoantes líquidas, são parentas próximas do ponto de vista articulatório. No imprescindível Preconceito linguístico: o que é, como se faz, Marcos Bagno explica que tal circunstância faz com que, “na história de muitas línguas [e na do nosso português] elas se substituam umas às outras indiferentemente”. O velho Camões, em seu Os Lusíadas, por exemplo, escrevia ingrês, frauta e pranta. Se a gente for procurar a etimologia destas palavras no Houaiss vai ver que frauta está certo, e pranta também, e também frecha, e uma porção de outras palavras. Mesmo o ingrês aparece lá, com a ressalva de que se trata de uma forma antiga. E a gente ria do João, e a professora tentava consertar sua pronúncia. Compreensível a atitude da professora: não se pode deixar que as crianças saiam por aí falando coisas “erradas”. O que me dá pena é que a gente não tenha podido compreender (e ainda hoje quase ninguém compreende, e muitos fazem questão de que não se compreenda) que o João, quando falava fror, estava apenas reproduzindo um padrão linguístico antigo, que seus pais, avós e bisavós também já vinham reproduzindo. Não estava errado, o João, que terminou concluindo a leitura aos trancos e barrancos. Os que ríamos dele não tínhamos como compreender que o pedaço de sociedade em que vivíamos era diferente do pedaço de sociedade em que ele vivia. Erroneamente julgávamo-nos superiores a ele e sentíamos pena de sua ignorância (que, a partir de então, o João tentou superar para poder ficar um pouquinho mais parecido com a gente). Mal sabia o João que era uma parte viva da nossa história linguística, e que também por isso (e não apenas por isso), merecia o nosso mais sincero respeito.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

PARTICIPAR DESTE SITE

“Não entro para clubes que me aceitem como sócio.” A frase é de Groucho Marx. Sempre que as pessoas me elogiam ou sempre que, mesmo de maneira indireta e sem intenção deliberada, as pessoas me fazem um cumprimento, lembro da frase do Groucho Marx, nem sei exatamente a que propósito. Nessas horas ocorre-me lembrar também, mais perversamente, de um episódio contado por Graciliano Ramos em Infância. Duas moças, não lembro se irmãs, elogiaram o paletó cor de macaco que o então moleque Graciliano vestia. “Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de qualidade superior, o feitio admirável. Envaideci-me: nunca havia reparado em tais vantagens.” O moleque logo desconfiou: “Mas os gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei. Longe disso: julguei curiosa aquela maneira de falar pelo avesso, diferente das grosserias a que me habituara.” A conclusão vem ao final do capítulo: “Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pospontos das minhas ações cor de macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco.” Pois hoje, ao entrar neste blog, por mera curiosidade, uma curiosidade vã e inútil (às vezes nem tanto, pois sempre posso consertar uma coisinha aqui e outra ali), descubro que tenho um seguidor. Sim, um único seguidor. Vejo o número um, essa coisa redonda, primordial. Deve ser, pensei imediatamente, alguém que eu conheço. Para três ou quatro pessoas contei que mantenho este blog amorfo, sem temática pré-definida. Deve ser um desses. Fui ver e, incrível, não é ninguém que eu conheça. Ei-la, no canto direito, a minha primeira e quiça última seguidora. E pensei: Vai ver se enganou. Entrou no blog enquanto fazia uma pesquisa e, sem querer, clicou no link PARTICIPAR DESTE SITE. Quando der pelo erro, apostei, volta lá e desmarca a opção. Eis que ergo o meu paletó cor de macaco à altura dos olhos e o examino bem: é exatamente isto, penso comigo mesmo, foi um engano.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

MUNDO PEQUENO

Não importa o que você fez nem se você foi grande ou não. Ser lembrado, lembrado de verdade, é coisa para muito poucos. E se você é grande (isto é uma pergunta), e se você tem potencial para ser grande não apenas no seu círculo, mas em outros e mais amplos círculos? E se esse potencial de amplitude não se realiza? Eis aqui, falando para um público interessado, um grande homem. Grande cientista do direito, grande jurista (foi assim que o apresentaram) e sobretudo grande humanista. Velho, diabético, meio surdo. Digno, sem dúvida. Grande cabeleira branca, modos educados, voz professoral. Ei-lo aqui, falando para um público interessado. E ninguém, absolutamente ninguém o conhece, a não ser os seus pares. Seus colegas de trabalho o conhecem. Alguns juízes o conhecem. Angariou também, ao longo da vida digna, alguns inimigos que o conhecem bem – e o detestam. Fora do próprio Estado, porém, ninguém o conhece. Fora, aliás, do círculo jurídico de seu Estado, ninguém o conhece. E é grande, e é humanista. Uma vocação frustrada? Não. O mundo é muito pequeno para o número de grandes homens que o habitam. Morrerá sem que o mundo o conheça, essa sumidade da ciência jurídica, esse grande humanista, sem dúvida digno e honrado e honesto, aqui homenageado, aqui, nesta salinha pequena, com pouco mais de cinquenta pessoas.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

SINA

Desta história sei pouco, pois a ouvi indiretamente, mas tive o prazer de conhecer sua protagonista durante um final de semana. Me disseram que de início ela morava com o pai, que lhe dava surras inexplicáveis. (Da mãe, ela havia dito, nunca tinha apanhado; o problema era que a mãe levava estranhos para casa: Meu destino ia ser muito pior, dissera, ao referir-se à possibilidade de ter ido morar com a mãe.) Certo dia, num de seus inexplicáveis acessos de raiva, o pai lhe deu uma surra com uma tábua. Nunca sangrou tanto na vida. As marcas estavam lá, nas costas, para quem quisesse ver. Mas parece que os sofrimentos não deixaram mossa. Ela fala com uma honestidade despretensiosa. Seu modo é modesto e humilde; sua expressão é de índia ingênua. Pequenininha, muito pequena para os seus treze anos, tudo nela é suave e brando e educado. E, não posso esquecer, sua alegria espontânea irrompe de repente em risadas infantis que desarmam quem as ouve. Parece, não estou bem certo quanto a isso, que depois foi levada para morar com uma tia. Esta também alimentava instintos sádicos e a surrava com incompreensível prazer. Ela simplesmente não entendia. Por que aquela violência gratuita? Por que aquelas surras absurdas? Então, por uma benéfica conjunção de fatores, chegara à família que a acolhera. Parece que a tia se cansara dela, não sei, e a entregara para cuidar de uma senhora idosa. Mas antes tinha que sofrer mais um pouco. Contaram-me que o pai ou o marido da tia a tinha molestado. Que sina. No domingo, pouco antes de me despedir dela (não nos veremos durante muito tempo) eu a olhei não com outros olhos, que não é possível, mas sob nova luz: aquela plácida expressão de bem-estar, aquele riso infantil e puro, aqueles olhos vivos e brilhantes, tudo nela me surpreendia. Eu me perguntava como era possível que ela não amaldiçoasse a humanidade inteira e, em especial, os homens, ou como não tinha ganas de enlouquecer espontaneamente, de dor e de raiva, ou como podia sorrir e simplesmente viver como se nada daquilo pudesse afetar seu espírito benfazejo. Com que coisas sonhava à noite?, eu me perguntava. Quando me despedi, disse sinceramente (como tão poucas vezes já disse) que tinha sido um prazer conhecê-la. E emendei um Obrigado ainda mais sincero (porque ela nos ajudara de um modo que não vem ao caso relatar). Ela sorriu acanhadamente, olhando para baixo, e disse De nada. Parecia vivamente surpresa de que pudessem agradecer-lhe por alguma coisa.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

O LEGADO DA NOSSA FRAGILIDADE

Eu estava lanchando quando uma mulher de seus trinta e poucos anos aproximou-se e sentou-se ao balcão. Não pude deixar de observá-la, pois veio em minha direção, como se fosse falar comigo. Usava um vestido estampado, simples, e vestia meias de compressão. Trazia uma bolsa vermelha a tiracolo, tinha os cabelos presos num coque. Não era bonita nem feia. Sentou-se, pediu um suco de laranja e um salgado. Só. E ali, ao observá-la, senti uma ligeira inquietação. Não, inquietação não é palavra adequada. Mas não sei, afinal, qual é a palavra adequada. O fato é que, observando-a, achei-a frágil, sem que para isso houvesse nenhum motivo particular. Teriam sido as meias de compressão? Teriam sido os braços magros, fininhos, que notei quando chegou mais perto? Teria sido o rosto com marcas de espinhas antigas, que observei com o rabo do olho? E súbito compreendi: eu havia reconhecido uma verdade. Ela era, sim, frágil. E o cara ao lado dela, que chegou com o filho, um cara gordo, de óculos, careca, também era frágil. Olhei para mim mesmo enquanto mastigava minha empada e vi como eu era frágil. E atinei, finalmente, para o quanto todos nós somos frágeis. Filosofia de botequim, sem dúvida. Sou dado a filosofias de botequim. Bem. Escolha qualquer pessoa e a observe. Você verá como ela é frágil e patética e digna de compaixão. Mesmo as bonitas, quiçá especialmente as bonitas, todas são dignas de compaixão. Repare nos defeitos, que sempre os há: repare nas canelas finas, na bunda batida, repare na orelha grande, na boca torta. Mas repare também no nariz perfeito, nos seios empinados, nos bíceps volumosos. Repare nas roupas, tão frágeis e patéticas e dignas de compaixão (tudo o que se relaciona com o ser humano é patético e frágil e digno de compaixão): repare na bolsa humilde e na calça esgarçada, repare no vestido chique, na gravata cara, nos óculos de grife. Tudo é tão pequeno e frágil, tudo é tão precário, tudo é tão vão. E, que coisa surpreendente, nós vamos vivendo como se isto não fosse conosco. Vamos vivendo como se tivéssemos domínio sobre as coisas, sobre as circunstâncias. Vamos vivendo, enfim, como se fôssemos os senhores feudais da vida. E no entanto tudo que tocamos, tudo que construímos, tudo que pensamos, a tudo isso nós transmitimos, como uma doença, o comovente legado da nossa fragilidade.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

NOSSO MUNDO PERDULÁRIO

Um dos chocolates de que eu mais gostava, quando era criança, era o Baton Garoto. Como não tinha dinheiro para comprá-lo quando quisesse, costumava (ah, vergonha) chupá-lo como a um picolé, para que demorasse a acabar. Dia desses estive numa festa em que havia uma bacia cheia de Batons. Que riqueza, que mundo perdulário! Eu catava os Batons, um, dois, três, e, enquanto me empanturrava (já estava começando a enjoar) pensava na abundância desavergonhada de hoje em dia. Antigamente, na casa dos meus pais, certas comidas e guloseimas eram raras. O presunto e o queijo prato, por exemplo, eu os considerava iguarias. Era um acontecimento quando podíamos comer um misto-quente. E nem falar em refrigerante! Os ricos, naquela época, não eram tão ricos como os de agora, e sua abundância era menos acintosa. Hoje os ricos são inacessíveis, perdulários e não raro estúpidos. Naquela época os pobres, sempre muito honrados, acreditavam que o fato de serem pobres, e de haverem ricos, era uma escolha divina que não lhes cabia contestar. Hoje se enchem de rancor contra os ricos e mal se contêm, de ganas de os bater e chutar, ao ver as migalhas que caem de suas mesas. Culpa, imagino, do nosso mundo perdulário.

quarta-feira, 21 de março de 2012

QUESTÃO DE ESTILO

Eu já vinha pensando nisso. E eis que ontem, ao ler uma entrevista mais ou menos antiga que Javier Marías concedeu a Juan Gabriel Vásquez, deparei-me com o seguinte trecho, que vai por mim livremente traduzido:

Veja, a palavra “estilo” se usa cada vez menos e é cada vez mais desdenhada: como não é científica... Mas a mim me parece uma palavra útil, e, além do mais, ainda que não seja fácil de definir, creio que o estilo existe. Mas isso, sim, existe cada vez menos: se a pessoa se depara com um filme de Hitchcock na televisão, bastam três planos para dizer: “Isto é de Hitchcock”. O mesmo acontece com John Ford, com Orson Welles... […] Em literatura […] também tenho a sensação de que começam a aparecer autores que não têm maior interesse em ter uma voz reconhecível. A mim me agrada que haja uma voz reconhecível. Gosto que os filmes de Hitchcock se pareçam com Hitchcock. E se há um que se parece menos, pois este me agrada menos. O mesmo acontece com Conrad ou com Henry James, para mencionar dois autores cujo estilo é instantaneamente reconhecível.”

Pois eu vinha pensando nisso. Tenho lido coisas que não sei se são de fulano, de beltrano ou de sicrano. Por que eu leria fulano, se o que ele escreve não se distingue do que escreve beltrano? Ou por outra: por que leio Javier Marías, ou Conrad, ou Bernhard, ou Nelson Rodrigues, ou Graciliano Ramos?

segunda-feira, 19 de março de 2012

A NOITE ESTÁ SÓ COMEÇANDO

Ela é morena, bem brasileira, do jeito que os gringos gostam. Ela diz: "É forró de pé-de-serra", e os gringos não entendem nada. Ela requebra e repete: "Forró de pé-de-serra". E continua dançando, um copo na mão. "Tradicional", diz. "É uma música tradicional". E os gringos parecem começar a entender. Um fala inglês, outro italiano, outro castelhano. Julgo ter ouvido algo parecido com o alemão. O que fala castelhano agora está tomando aulas de forró. É duro como pau de vassoura, e a certa altura desiste: solta-se, remexe os braços, agacha-se diante da morena, que parece sorrir. Daqui de cima, da janela do meu quarto, no sexto andar, não consigo vê-los direito lá embaixo. Não há dúvida de que a pousada é um sucesso. Prova de que a propaganda boca a boca funciona: quem vem volta contando que a pousada é boa, a gente se diverte muito, coisa simples, sabe?, os quartos nos fundos, num puxadinho, umas redes na lateral, ontem a gente dançou e bebeu a noite toda com umas brasileiras etc., etc. A pousada vive cheia, mesmo nos períodos de baixa temporada. Daqui de cima, os cotovelos bem apoiados no peitoril da janela, vejo-os para lá e para cá no pátio pequeno, entre a casa, onde provavelmente moram os proprietários, e os quartos dos fundos, onde provavelmente ficam os alojamentos. Um dos gringos, o que fala inglês, um sujeito de cabelos e cavanhaque brancos, mais animado que os outros, provavelmente mais bêbado também, enfia uma sacola plástica na cabeça e sorri de modo estranho: ru, ru, ru, enquanto aponta para uma das brasileiras, que requebra distraída. Enquanto isso, o italiano começa uma brincadeira sem pé nem cabeça: levanta um braço, o dedo indicador em riste, e se dirige a uma das brasileiras; desce o braço devagar, o dedo ainda em riste, e toca na ponta da cabeça dela, e aí ela começa a girar sobre si mesma enquanto levanta o braço imitando o italiano e se dirige ao argentino (ou chileno, ou uruguaio, ou peruano, sei lá) e o toca com o dedo em riste, e este também começa a girar, levantando o braco, etc., etc. Um loiro, de cabelo longo preso num rabo de cavalo, aparece no pátio, inclina-se sobre uma caixa de isopor e desaparece: provavelmente pegou uma cerveja. Um sujeito magro, que eu não tinha visto até então, surge pela lateral e para no meio do pátio, um copo na mão, conversando com alguém que não posso ver. Quantas pessoas mais, me pergunto, estão lá dentro? Afasto-me da janela para escovar os dentes e ouço uma onda de risos. O forró continua. A gringalhada, penso, enquanto escovo os dentes diante do espelho, vai ter o que contar quando chegar em casa. A noite está só começando.

quinta-feira, 15 de março de 2012

NEGRA NÚBIA

É uma visão que ainda hoje me inquieta, passados já muitos meses. Já lhes contarei. Um dia, em Bogotá, numa rua de cujo nome já não me lembro (era no centro da cidade) vi uma negra belíssima. Enorme e altiva. Magnífica. Pensei na hora, de olhos arregalados e queixo caído: É descendente direta das negras núbias do vale do Nilo. Usava um vestido branco colado ao corpo, um desses vestidos que parecem ter vida própria e que insistem em subir pelas pernas, sempre e cada vez mais, como que empenhados em desnudá-las, as pernas, e, se possível, todo o resto do corpo. Uma devoradora de homens, completei, abismado. Estava parada diante de um sobradão antigo, de porta e janelas, cercada de outras mulheres, menores que ela e mais acanhadas, ainda que bonitas. O táxi passou (eu estava num táxi, a cara colada ao vidro da janela) e se perdeu por entre as ruas sujas do centro da cidade. Bem. Era a primeira vez que eu ia a Bogotá, e, naquele preciso momento, a cara colada ao vidro da janela, eu tentava absorver a cidade, como faço com todos os lugares que ainda não conheço. Enveredou o táxi, como eu dizia, pelas ruas sujas do centro, e vi prédios velhos e muros cheios de pichações. Era um final de tarde. A janela do táxi já me mostrava outras paisagens: comerciantes à porta de suas lojas, estudantes voltando para casa, pedestres distraídos. Mas não me saía da cabeça a imagem de um minuto atrás: as meninas conversando animadamente à porta do sobrado, a negra núbia entre elas. O homem que buscasse aconchego e alívio naquele harém (pois era um harém) teria que entrar por aquela porta estreita (nem sempre é larga a porta que leva à perdição) e subir por uma escada velha e escura, que o levaria ao primeiro andar. As meninas, eu não tinha dúvida, não fariam mal nenhum aos seus clientes. Risonhas e jovens, lembravam-me mais as borboletinhas italianas do conto A santa, de Gabriel García Márquez (por um instante imaginei tê-las visto vestidas de organdi azul, de popelina cor-de-rosa, de linho verde), e, pelo modo como riam e brincavam entre si, pareciam mais propensas a uma doce guerra de travesseiros que ao trabalho diário, digno mas duro, de apascentar os inquietos corpos dos homens. Mas a negra núbia, ah, essa era diferente. Embora também sorrisse, despreocupada, e parecesse participar das bricandeiras das colegas, dela eu podia intuir: tinha um apetite voraz. Não se esquivaria aos clientes. E pelo contrário: conduzi-los-ia lenta e deliberadamente pela escada escura. Dentro do quarto, ofertar-lhes-ia prazeres terríveis, que os há, e então, quando se esgotassem, quando estivessem derribados na cama desfeita, inermes, incapazes de opor qualquer resistência, comê-los-ia vivos, bem devagar, como a viúva negra come o macho que a fecunda ou que às vezes nem chegou a tanto, o coitado. Ainda assim, eu tinha certeza, ela era a mais assediada, a mais procurada: era ela a que os corajosos escolhiam, trêmulos de determinismo biológico, pois ao homem, tal qual ao macho da viúva negra, não lhe é dado fazer outra coisa senão cumprir o seu destino, uma vez e sempre. Enquanto o táxi passava e a imagem se assentava em minha memória, pude ver a negra sorrir. Seus dentes brancos, lácteos, perfeitos, emoldurados por lábios que eram pura promessa, eram a prova cabal de que as minhas impressões estavam certas. Imediatamente tratei de esquecer o nome da rua. Mas deliberei, claro, guardar na lembrança a luz matizada daquela tarde, e o impacto estético e físico que aquela negra me causava: alta como uma torre, dominava suas colegas como um forte imponente domina a paisagem no deserto ao seu redor. Ainda hoje, quando me lembro daquela visão, se me arrepiam os cabelos. Que técnicas ancestrais, me pergunto, a medo, que segredos inomináveis dominava aquela negra?

sexta-feira, 9 de março de 2012

A VIDA É ESTA

Eis que vou até a estante e pego o Cisne de feltro, do Paulo Mendes Campos. Há alguns dias, não sei exatamente por que (as saudades literárias surgem do nada, ou de muito pouco, como, aliás, a maioria das saudades), tive a ideia de relê-lo. Há quanto tempo não o lia? Três, quatro anos? Eis que folheio o livro, à procura de uma boa crônica. (Um parêntese: como escrevia bem, o Paulinho! Será que há gente escrevendo como escreviam o Paulo Mendes Campos, o Rubem Braga, o Fernando Sabino, o Otto Lara Resende? A crônica, aquele registro coloquial, doce, suave e descompromissado – mas nem por isso superficial –, morreu?) Deparo-me, pois, com uma crônica chamada Rua da Bahia. A Rua da Bahia, segundo o Paulinho, era uma rua quase mítica (“a Rua da Bahia era naquele trecho o lado feérico dos habitantes, a fantasia, a inquietação”), um local aonde as pessoas iam para satisfazer – ou tentar satisfazer – seus desejos, uns mais confessáveis que outros. Os detalhes, bem, só lendo a crônica. Mas o que importa dizer é que quando li a crônica pela primeira vez, ela não despertou em mim nenhum sentimento especial. Creio mesmo não tê-la considerado das mais interessantes. Mal sabia eu, então, que anos depois, e completamente esquecido de tê-la lido, percorreria a Bahia atento às suas lojas, às suas calçadas velhas, aos seus prédios antigos. Era um sábado à tarde, e a Bahia, e na verdade toda a Belo Horizonte (como qualquer cidade de interior que se preze), estava fechada. Pois bem. Eis que agora, ao reler a crônica, caio numa espécie de estupor: como o mundo dá voltas! Naquela época não podia imaginar jamais ir a Belo Horizonte! Que tinha eu com Minas? Que tinha eu com Belo Horizonte? Minas e Belô, para mim, eram duas coisas: o Clube da Esquina (o Milton Nascimento, o Beto Guedes, o Lô e o Márcio Borges, o Toninho Horta, etc.) e um outro clube, sem nome: o Paulo Mendes Campos, o Fernando Sabino, o Otto, o Hélio Pellegrino. Alcançava-os com discos e livros, sem precisar sair de Arapiraca. E eis que anos depois, por caminhos e motivos inescrutáveis, chego a Belo Horizonte pela terceira vez (sou quase um habitué) e me hospedo no velhíssimo Othon da Afonso Pena, diante do Parque Municipal, ao lado da Rua da Bahia. E subo a Bahia e desço a Bahia, e vejo, gravada numa escultura, no cruzamento com a Avenida Álvares Cabral e com a Rua dos Guarajaras, a frase referida por Paulinho logo no início da crônica: A vida é esta, descer Bahia subir Floresta. A Bahia eu subi e desci; o bairro da Floresta, mais para lá, do outro lado da Afonso Pena, eu vi de longe, da janela do meu quarto: preferi não descer. Mas concordo: a vida é esta.

segunda-feira, 5 de março de 2012

ADEUS, MENINA

Nós a vimos no Píer 11, sentada num banco de madeira. Era um dia frio, de céu de muitas nuvens: um dia frio e ventoso, como costumam ser os dias de inverno em Nova Iorque. Loira, cabelos cortados à altura do pescoço, olhos claros, não me lembro se azuis ou verdes. Estava bem protegida: sobretudo beje com a gola levantada, botas escuras. De pernas cruzadas, conversava, por assim dizer, com seu iPhone: enquanto falava, segurava-o com a mão direita diante do rosto. Ah, as maravilhas da tecnologia, pensei. O amor no século vinte e um. O namorado, noivo, marido, sei lá, estava em outra cidade, talvez em outro país, e não havia alternativa ao casal senão matar a saudade através do FaceTime ou de outro software. Nós passamos, fomos até a ponta do pier, tiramos umas fotos do Brooklyn lá do outro lado, contemplamos os plácidos ferries, congelamos um pouco e decidimos voltar. Quando passamos por ela, tinha se levantado e estava girando lentamente sobre o próprio eixo, o celular ainda erguido à altura do rosto: mostrava a paisagem ao amado. Conversava e ria, e em seu riso notei uma nota de tristeza. É justo, pensei. Não é possível estar completamente feliz, ou razoavalmente feliz, quando o amado não está por perto. Era uma tarde de domingo, tinha esquecido de dizer. Um final de tarde de domingo, para ser mais específico. Então imaginem: um final de tarde de domingo, com frio e vento em Nova Iorque. Ela se despediu, guardou o celular e se dirigiu a uma fila ali perto, certamente a fila do ferry para o Brooklyn. Adeus, menina, não nos veremos jamais, eu lhe disse em pensamento. Seguimos adiante, descemos na estação de metrô errada, tornamos a subir, voltamos sobre os próprios passos e enfim acertamos: agora sim, tomaríamos o metrô destino uptown. E qual não foi minha surpresa quando entramos no vagão e eu a vi novamente, sentada de pernas cruzadas. Tinha um ar ausente, como convém às mulheres enamoradas, especialmente se é domingo e se faz frio em Nova Iorque. Não me olhou nem uma vez enquanto chacoalhávamos em alta velocidade rumo aos nossos destinos. Provavelmente sequer percebeu que os estranhos em pé diante dela também tinham estado no píer. Desceu primeiro que nós, dez minutos depois. Pelas janelas do vagão ainda pude vê-la de costas, olhando à esquerda e à direita. Parecia não saber que destino tomar. O metrô ganhou velocidade, afastou-se em direção à Times Square e eu fiquei pensando em como este mundo é pequeno, em como as distâncias são relativas e em como desta vez, sim, eu podia dizer Adeus, menina, não nos veremos jamais.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

TEMPOS BOBOS

A febre do politicamente correto (mais que a febre, a doença) é altamente contagiosa. A tal ponto que não considero improvável que daqui a dez, vinte anos já não possamos compreender o que é a vida social hoje – isto é, como falamos, como nos comportamos, como nos exprimimos. O nosso passado recente nos parecerá remoto e incompreensível, e não é difícil imaginar que os cidadãos desse paranóico mundo novo, irremediavelmente abobalhados pela contagiosíssima doença do politicamente correto, já não consigam pensar por si próprios e talvez tenham que se submeter, ai, a comitês totalitários, que avaliarão previamente o que é escrito, filmado, dito e tocado, a fim de declarar, em caráter definitivo, se aquilo é ou não é aceitável, se aquilo é ou não é ofensivo, digamos, à comunidade dos ciclopes, que deve haver uma. Digo isso a propósito de uma notícia que li por esses dias: o Ministério Público Federal protocolou ação na Justiça Federal para tirar de circulação (não sei se no Brasil inteiro ou se apenas em Minas Gerais, onde a ação foi proposta) o Dicionário Houaiss, que, ao contrário do Aurélio e do Michaelis (as editoras Globo e Melhoramentos, responsáveis pela publicação dos respectivos dicionários, atenderam à recomendação do Ministério Público Federal, como o leitor compreenderá) teima em manter entre as muitas definições do verbete “cigano”, a despeito de persuasivas advertências, expressões consideradas (segundo o Ministério Público Federal) pejorativas e preconceituosas: "que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador", etc. E não é suficiente para aplacar a sanha politicamente correta encampada pelo MPF que no dicionário se avise, através da abreviatura pej. (pejorativo) que aquele é apenas um dos muitos significados historicamente atribuídos à palavra (pois o Houaiss não os tirou do nada, nem o Aurélio nem o Michaelis, antes de capitularem). Também não é suficiente que a despeito destas expressões encontre-se no dicionário, como principal definição para a palavra, a histórico-geográfica: “relativo a ou indivíduo dos ciganos, povo itinerante que emigrou do Norte da Índia para o oeste (antiga Pérsia, Egito), de onde se espalhou pelos países do ocidente; calom, zíngaro”. Segundo o procurador responsável pela ação, “Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, […] fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação.” Caráter discriminatório? Assumido? Desde quando, me pergunto, os dicionários não podem mais registrar uma definição histórica, mesmo indicando que é pejorativa, apenas porque hoje se entende que ela é preconceituosa? Se não me engano, até agora (pode ser que daqui em diante não mais, a seguir-se o exemplo do Aurélio e do Michaelis) o papel dos dicionários, em todos os povos e em todas as épocas, tem sido o de registrar: nele se registra o que está em uso na língua. Não são os dicionários, que eu saiba, que definem, que escolhem, que criam os sentidos que devem compor um verbete. Não é suprimindo-se a expressão no dicionário (ou pelo menos não deve ser, pois dicionário não é lei) que se conseguirá fazer com que uma expressão deixe de ser usada. A doença do politicamente correto está de tal modo disseminada na nossa sociedade esquizofrênica, que hoje é preciso pensar não duas vezes, como se diz, mas três, ou quatro, ou cinco, e não apenas antes de falar, mas antes de escrever, antes de filmar, antes de tocar. É de meter medo tentar dizer qualquer coisa, por mais tola que seja, e chegará talvez um tempo em que será preciso antes consultar um dicionário de expressões politicamente incorretas (ou um comitê, como dito mais acima), antes de aventurar-se nessa perigosa empreitada que é emitir uma opinião, por qualquer meio que seja. Hoje, já se sabe, não se deve dizer negro, mas afro-descendente; não se deve dizer cego, mas deficiente visual. E por aí vai. Recentemente a Editora Globo mudou o nome do livro O Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie, como foi originalmente chamado no Reino Unido (Ten Little Nigers), para E não Sobrou Nenhum (And Then There Were None), como é chamado, timoratamente, nos Estados Unidos. Outro dia fez-se um escarcéu terrível a respeito de Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, porque no livro, segundo os especialistas, o autor usa “estereótipos raciais”. E acabo de ler que o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária - CONAR vai julgar suposta prática de racismo contida na propaganda da nova embalagem do azeite Galo, que diz “O nosso azeite é rico. O vidro escuro é o segurança”. “Escuro” e “segurança”, entenderam? As minorias agora, como que libertadas de um cárcere milenar, imposto por uma maioria desalmada, parecem sedentas de vingança e, vociferantes, cobram, exigem, mandam. Espanta-me que o MPF dedique-se com inusitado ardor – em prejuízo do trabalho sério, necessário, indispensável que lhe cabe institucionalmente desempenhar – a cuidar de picuinhas e de bobajadas, que mais parecem coisas de desocupados. Espanta-me também que pessoas cultas, ou assim ditas (a cultura nem sempre se faz acompanhar pelo bom-senso) defendam estes e outros disparates, como um de que eu mesmo fui testemunha: discutia-se se num projeto de regulamentação deveriam constar as expressões “diretor(a)”, “coordenador(a)”, etc., pois os defensores de tal despropósito acreditavam que manter a denominação do cargo apenas no masculino era uma afronta ao sexo feminino. (O pior é que os defensores da ideia estapafúrdia saíram vencedores, e o texto foi publicado assim, com esses antipáticos “(a)” depois de cada cargo. Se a ideia grassa, não é impossível que algum senador ou senadora, deputado ou deputada, apresente projeto de emenda à Constituição com o fim de corrigir a histórica opressão masculina, e que dentro em pouco estejamos lendo disparates como “Cada Senador(a) será eleito com dois suplentes”, ou “O número de Deputados(as) à Assembléia Legislativa corresponderá [...]”, etc.) Me parece que é péssima notícia, verdadeiramente reveladora dos tempos bobos em que vivemos, que tenhamos que discutir se é preciso ou não incluir numa obra literária, como no caso de Caçadas de Pedrinho, explicações (advertências, na verdade) para os alunos, dizendo-lhes que Monteiro Lobato vivia numa época em que era comum pensar que o negro, etc. etc., ou que tentemos suprimir de um dicionário de reconhecido valor expressões consagradas pelo uso (tenho até medo de usar a expressão “expressão consagrada” – perdoem-me a repetição –, pois posso ser acusado de dizer que todo mundo concorda com ela, o que não é verdadeiro), a pretexto de que tais expressões possam ser consideradas ofensivas ou preconceituosas, ou ainda que o CONAR, adiantando-se a algum eventual clamor da população negra, julgue se a propaganda do azeite Galo é ofensiva ao relacionar o emprego de segurança com a cor escura ou negra, insinuando com isso, maliciosamente, que apenas os negros foram talhados para o emprego (como se ser segurança fosse o pior castigo do mundo). Que precisemos discutir estes assuntos, e pior, que discordemos tanto ao discuti-los, é uma triste indicação de nossa superficialidade intelectual. São mesmo tempos bobos, estes em que vivemos.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O NOSSO McSORLEY'S

O Bar do Paulo tinha tudo para ser o nosso McSorley's. (Para quem não sabe, o McSorley's fica no East Village, na Sétima Rua – sim, na Sétima Rua e não na Sétima Avenida –, em Nova Iorque, e seu nome completo é McSorley's Old Ale House. O old aqui é bem verdadeiro: o McSorley's foi fundado em 1854, numa época em que se jogava serragem no chão para absorver, presumo, as cuspidas dos pinguços. Até hoje o McSorley's conserva a mesma cara, descontada a serragem, que tinha no século dezenove.) O Bar do Paulo, pois, que nem é tão antigo, bem poderia ter sido o nosso McSorley's, o McSorley's de Arapiraca. Mas como no Brasil (e mais acentuadamente em Alagoas) as coisas antigas são tratadas como trastes, como meros estorvos (ninguém as vê como tradições, como patrimônio), aconteceu com ele o que era de se esperar: foi ficando cada vez mais decadente, cada vez mais velho (utilizo a palavra “velho”, aqui, como sinônimo de mal cuidado) até, finalmente, fechar. Antes disso, nas duas últimas décadas, tinham sido realizados alguns eventos promocionais, nunca muito bem-sucedidos, com o objetivo de angariar fundos para fazer reformas no bar: seu Paulo, o proprietário, não era o empresário típico, desses que pensam números, de modo que costumava malbaratar seus minguados lucros não se sabe exatamente como, e nunca lhe sobrava dinheiro para fazê-las (as reformas) ele mesmo. Dia desses, porém, me disseram que tinham visto o bar aberto, e imediatamente imaginei lá dentro uns espectros cabisbaixos, movendo-se lentos sob luzes mortiças, melancolicamente embalados por alguma canção de Janes Joplin. Deve ter sido um engano, pensei, isso de terem visto o Bar do Paulo aberto. Eu mesmo tinha passado diante dele uma noite de sábado, não muito tempo atrás (as noites de sábado, por sinal, eram as melhores, as mais concorridas) e o vi como realmente está: fechado. A pintura da fachada, de uma cor indefinida, pálida, estava descascando; as portas, as pesadas portas de ferro, que recordo pintadas de branco ou amarelo, estavam enferrujadas. Dobrei a esquina, devagar (estava de carro), tentando vislumbrar através das janelas sujas algum movimento lá dentro. O Bar do Paulo, pelo que me consta, efetivamente morreu. Seu Paulo, que já era velho quando eu era criança, ainda vive, e espero, sinceramente, que esteja bem. Mas me disseram que anda triste, talvez depressivo. E não é para menos: seu Paulo foi o anfitrião feliz de pelo menos duas gerações, a dos meus pais e a minha. Testemunhou muita coisa: brigas inusitadas, conspirações políticas, altas traições, comemorações patéticas. Não me surpreende que agora, sem bar e sem fregueses, tenha sido tomado por uma nostálgica melancolia. Eu e meus amigos chegamos a ficar amigos do seu Paulo, que sempre nos recebia com um sorriso no rosto. Nos últimos anos, costumávamos nos lembrar de uma noite de véspera de Natal em que protagonizamos uma das madrugadas mais delirantes da história do bar. Sempre que conversávamos (não era raro que o seu Paulo sentasse à mesa conosco), lembrávamos daquela noite, que começou despretensiosa, sem cerveja (seu Paulo não imaginava que a madrugada do dia 25 de dezembro pudesse ser promissora), e se estendeu até o raiar do dia, com grande vozerio e barulho de risos (do nada apareceram cervejas e Montilas, que prontamente cumpriram seu papel), assustando até mesmo os mais empedernidos bebedores (conta-se que dois pinguços, passando na frente do bar numa hora em que o céu já começava a se tingir de cinza, cogitaram de juntar-se à farra. Quem os viu conta que um falou para o outro: “Vamos entrar?”. E o outro teria respondido, vivamente horrorizado: “Você está louco? Isso aí é barra pesada!”) Numa das últimas vezes em que visitei o bar, lá se vão uns seis ou sete anos, seu Paulo falou mais uma vez daquela noite, e desta vez com lágrimas nos olhos (vi as lágrimas, juro). Perguntou das fotos (alguém, do nada, tinha aparecido com uma câmera) e queixou-se de que ninguém tivesse dado a ele, como lhe fora prometido, a foto daquela noite: aquela em que posamos todos, quinze ou vinte pessoas, o seu Paulo incluído, como um time de futebol, nos fundos do bar. Eu mesmo creio que nunca vi a foto revelada, e duvido que se a visse não tivesse ficado demasiado saudoso do que fomos, daquela época e do próprio bar, o nosso McSorley's.  

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A NARCISA E O NEYMAR

Fuçando na Internet durante a tarde preguiçosa, leio que a socialite Narcisa Tamborindeguy até ontem não sabia quem era o Neymar. Ao ver um burburinho no camarote, de onde naturalmente assistia ao desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, ela teria perguntado: “O que é que está havendo?”, ao que teriam respondido: “É o Neymar”. (Vinha chegando, o rapaz.) E ela, para assombro dos que estavam ao redor: “E quem é Neymar?”. Quando responderam que era “um jogador prodígio, com fama internacional e cabelo diferente”, aí ela correu para tirar fotos com ele. Imediatamente me lembrei da grã-fina das narinas de cadáver, do Nelson Rodrigues, que, levada ao estádio para assistir a uma partida de futebol, não sabia quem era a bola. Você não é obrigada a conhecer o Neymar, Narcisa, nem ninguém é obrigado a se interessar por futebol. Na verdade, considerei uma boa notícia, nesse mundo em que se sabe tudo, e pior, em que se tem que saber tudo, que você não conhecesse o Neymar. Pena que agora você já conhece.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

DOMINGO DE CARNAVAL

É um silêncio quase perfeito, o deste domingo de carnaval. Mais cedo cheguei à janela do meu quarto e vi árvores estáticas e carros como que abandonados há séculos. Pouco depois, parado à janela da cozinha, olhando o cruzamento vazio, ouvi um som estranho, incomum: olhei à direita e vi que um grupo de skatistas se aproximava lentamente. Dois, três, cinco, dez skatistas passaram sob minha janela, seguros, soberanos, surreais. É claro que o silêncio não é absoluto: há o eco distante de vozes; há carros que passam muito longe; há um cachorro que late numa casa de esquina. De vez em quando um insatisfeito, algum folião frustrado (imagino que seus amigos o tenham abandonado), sopra uma vuvuzela que mais parece uma corneta de Jericó, e um único som agudo e desavergonhado, impertinente, mal-educado, rompe o quase imaculado silêncio da tarde. Nada disso, porém, retira à tarde de domingo seu ar estático. Parado à janela, tenho a impressão de que tudo está em suspenso. Parece quase impossível que o mundo inteiro não seja tão silencioso quanto esta rua.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

CORAÇÕES ADOLESCENTES

Não nos preocupávamos com nada. Nossa vida era um futuro absolutamente garantido: felicidade e realização. Não que achássemos que seríamos ricos ou bem sucedidos. Não pensávamos nisso. Achávamos, isso sim, que saberíamos o que fazer quando o futuro chegasse. E por isso vivíamos somente o presente: nossa vida era o nosso almoço de daqui a pouco, o que faríamos à noite, os encontros prometidos, os beijos ansiados. Éramos tão fortes, tão poderosos! Parecia haver, no fundo dos nossos corações, uma promessa plantada pela vida: não temam, o mundo pertence a vocês. Mal sabíamos que estas eram promessas de nós para nós mesmos. A vida não nos prometia nada. Éramos nós, ansiosos, jovens, sôfregos e sonhadores, eram os nossos corações adolescentes que fantasiavam. 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

FESTA

Ele está sentado, olhando as próprias pernas. Como são finas e sem pêlos as minhas pernas, ele pensa. Suas mãos descansam sobre o assento do sofá. Sua filha passa para lá e para cá, dando os últimos retoques na casa. Daqui a pouco vão chegar umas pessoas que eu não conheço, e outros que conheço pouco, e uns poucos que conheço bem, e todos, sem exceção, primeiro vão me olhar de longe, mais ou menos como se não tivessem me visto, pensando no que vão dizer. Cumprimentarão minha filha e meu genro e perguntarão pelo meu neto, e ouvirão que ele está no quintal, brincando. Depois, com a ideia mais ou menos formada (Vamos abordá-lo assim ou assado), vão se dirigir a mim com dois tipos de cara, as únicas possíveis: a compungida mas falsamente reconfortadora e a reconfortadora claramente compungida. Alguns mencionarão o assunto, dirão que esta é a vontade de Deus; outros não dirão nada; quer dizer, dirão amenidades. Queria estar em casa, sozinho. De que modo a casa fica sem mim? Tenho pena da televisão desligada, das janelas fechadas, da cama forrada. A filha passa esbaforida com um conjunto de travessas e diz, sem parar: Vou buscar seu neto, papai; vou trazer ele aqui pra vocês brincarem. Ele pensa: Não quero brincar com meu neto. Não tenho nada a dizer a ele. Sente um súbito cansaço da festa que ainda não começou. Vai ser muito ruim mais tarde, ao encontrar tudo às escuras. Não seria tão ruim se já estivesse em casa, vendo a noite cair sobre os móveis. O ruim, ruim mesmo, é chegar em casa e encontrar tudo às escuras. Abrirei o portão enquanto minha filha espera dentro do carro, sentada no banco do passageiro, como sempre. O genro, ao volante, parecerá impaciente. E o neto, como sempre, dormirá no banco de trás. Vai ser tão difícil. E suspira, resignado.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O ANTÔNIO, O MARCOS E EU

Ela me chama de Seu Antônio. Hoje de manhã, quando a encontrei, me disse: “Bom dia, Seu Antônio!”, e eu, que não a corrigi logo no começo, que já não vejo como corrigi-la, respondi, simplesmente: “Bom dia, Rosa”. (Rosa é mesmo seu nome, registre-se.) Só que hoje, quando a cumprimentei, aconteceu algo estranho: vi que ela me olhava com um ar divertido. Pensei: será que ela sabe que o meu nome não é Antônio? Será que ela me chama assim só para ver até quando eu resisto? Eu também sou Marcos, aliás. Noutro prédio que frequento, o porteiro me conhece como Marcos. De onde ele tirou esse nome eu não sei, mas o fato é que sempre me cumprimenta assim: Bom dia, Marcos!, ou Boa Noite, Marcos!, e eu nunca o corrijo. (E olha que eu sei, desde o começo, que o nome dele é Damião.) Ser chamado por um nome que não é o seu, se você não se irrita, é algo curioso. A despeito de uma ligeira sensação de alheamento, eu me sinto como se participasse de uma brincadeira: Ahá!, meu nome não é esse, velho! A sensação de alheamento, por outro lado, explica-se da seguinte maneira: é como se eu, naquele momento, fosse outra pessoa. Como seria esse Antônio?, penso, se eu fosse mesmo o Antônio? Seria igual a mim? E esse Marcos, será que seria eu mesmo? E o mais estranho: sem mim, como o Luiz se viraria? Bem. Talvez alguém deva avisar à Rosa e ao Damião que eu não sou quem eles pensam que eu sou. Eu sou o de sempre: a mesma cara, o mesmo corpo, a mesma voz. Só não sou os nomes que eles pregaram em mim. Quase posso imaginar a decepção deles quando souberem que o Marcos, que o Antônio não existe. Quase posso ouvi-los dizer: Puxa, não é o Marcos? Não é o Antônio? (Como se o Marcos ou o Antônio tivessem deixado de existir de uma hora para outra, e isso fosse uma perda terrível.) E, legitimamente irritados, quase posso ouvi-los perguntar: Por que ele não nos avisou?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

CONSTATAÇÃO

“Quando somos jovens, todo mundo de mais de trinta anos parece ser de meia-idade, e todo mundo de mais de cinquenta parece ser antigo. E o tempo, à medida que passa, apenas confirma que não estamos muito equivocados em pensar assim. As pequenas diferenças de idade, tão cruciais e tão importantes quando somos jovens, apagam-se. Terminamos pertencendo a uma mesma categoria: a dos não-jovens.” A frase é de Julian Barnes, e a encontrei em The Sense of an Ending. Trata-se de um livro fininho que, à primeira vista, não parece ter a densidade que efetivamente tem. Faço a citação apenas para dizer que já havia pensado nessas coisas antes, e que até já havia tentado colocá-las no papel (não que eu tenha cinquenta anos: não cheguei lá ainda), mas nunca havia conseguido captar a ideia (mais do que a ideia, a sensação) de modo tão preciso quanto Julian Barnes. Não é de se estranhar: Julian Barnes é Julian Barnes, e eu sou eu.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

GRACILIANO E BERNHARD

As bibliotecas têm dessas coisas: colocam lado a lado escritores que, de outro modo, nunca se encontrariam. Agora mesmo acabei de receber pelos correios uma encomenda que fiz na Cultura: Graciliano: Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos, e Meus Prêmios, de Thomas Bernhard. Descontado o fato de que Graciliano: Retrato Fragmentado é de Ricardo Ramos, filho de Graciliano, o que importa dizer é o seguinte: o que pensaria Graciliano de Thomas Bernhard, ou vice-versa? Quase não tenho dúvida de que Graciliano reconheceria o valor dos períodos tortuosos, das repetições, de Bernhard. Certamente Bernhard admiraria o rigor e a precisão de Graciliano. Os livros estão aqui à minha frente, um ao lado do outro. Impensável relacioná-los de outra maneira. É verdade que os dois escritores foram contemporâneos durante breves anos, mas não os suficientes para que se conhecessem. Talvez, mas apenas talvez (a possibilidade é tão remota que chega a ser desalentadora), Thomas Bernhard tenha passado os olhos, apenas isso, pelo nome de Graciliano numa revista literária qualquer. Graciliano era grande, Bernhard, grande. Você talvez não tenha sabido, mas era. Você teria gostado de lê-lo. Tal como você, era avesso à hipocrisia. Um grande escritor, avesso à hipocrisia e à bajulação. Fico feliz de apresentá-los. Fico feliz de reuni-los sob o meu teto, na companhia de outros amigos. Passemos à biblioteca.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

SÓ POR CAUSA DE UMA FOTO

Vejo uma foto do pequeno Totó, o personagem principal do filme Cinema Paradiso. Ele segura diante dos olhos, na vertical, um pedaço de rolo de filme. Em seu rosto brilha um sorriso de pura felicidade, a felicidade de quem descobriu uma maravilha. Em poucos filmes, aliás, vi uma interpretação tão espontânea quanto a de Salvatore Cascio, o ator, que, por coincidência, tem o mesmo nome do personagem (Totó é o apelido de Salvatore). Observo seu sorriso aberto e seus dentinhos tortos, e comovo-me com sua orelhinha de abano estilo Topo Gigio. (Que pena, penso agora, que Totó tenha crescido: hoje deve ser um homem feito.) Leio que Salvatore, o ator, foi escolhido entre as crianças da cidade de Giancaldo, hoje chamada de Pallazo Adriano, em Palermo. Destacou-se por decorar com facilidade as falas e a marcação. Mas volto à imagem. Totó está olhando um pedaço de rolo de filme, um sorriso estampado no rosto. Veste um terno cinza, amarfanhado. Não há sinal de gravata. Um colete projeta-se sob a lapela. Em que lugar se passa a cena? Ao fundo vê-se uma parede bege, irregular. Atrás de Totó vê-se o batente de uma porta. Pode ser que esteja em sua própria casa (se bem me lembro, Totó havia levado uns pedaços de filme para casa). Pode ser, também, que esteja na sala de projeção de Alfredo. Tenho uma súbita vontade de ver o filme novamente, pela quarta ou quinta vez. Busco mais fotos na internet: vejo Salvatore (o personagem) adulto, de cabelos brancos, e vejo Alfredo, de óculos escuros, depois do acidente. Vejo a cidade de Giancaldo. 


Esta última foto, aliás, é particularmente encantadora: tirada talvez de cima do campanário da igreja, mostra a praça central (na verdade a praça é somente uma espécie de fonte), e, ao seu redor, a fauna da cidade: gente recolhendo água, um cavalo puxando uma carroça, três bois, um cachorro – e, à direita, no canto inferior, próximo ao cachorro, um homem encostado à parede de uma casa. É uma bela foto. Tem os elementos de simplicidade que despertam em mim um estranho desejo de partir, coisa que de vez em quando sinto. Eu moraria num lugar assim. Escolheria aquele sobrado, quase no centro da foto. Um sobrado de três andares, com toldos marrons protegendo seus minúsculos balcões superiores. Eu moraria ali, no terceiro andar, onde está aquele primeiro balcão, da esquerda para a direita. De manhã, depois de me levantar, iria até a varanda para saudar o dia. Debruçado sobre o parapeito, aspiraria a longos haustos, e, sem pressa, passaria os olhos pelos velhos telhados. Sinto agora uma estranha nostalgia: uma nostalgia do que não tive – a nostalgia de um lugar em que não vivi. Sinto na garganta um leve travo de tristeza: a tristeza pelo que não foi nem será. Olhando essa foto, tirada assim do alto, sinto-me como se estivesse me despedindo de Giancaldo. Tenho vontade de acenar para as pessoas em volta da fonte, para o homem encostado na parede. Até as sombras projetadas no chão me comovem. E eu continuo me afastando, os olhos fixos naquele quarto que nunca foi meu, nos telhados velhos, nos montes a distância. E tudo isso só por causa de uma foto.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

TODO DIA

Por que nos olham desse jeito? Sabem o efeito que provocam e fazem de propósito, ou simplesmente estão sendo sinceros? Sofro, parecem dizer. Hoje de manhã um deles me olhou assim. Magrinho, uma camisa enorme sobre o corpo (seu pescoço magro balançava dentro da gola folgada), estendeu a mão e me olhou desse jeito e eu fiz um gesto negativo com a cabeça e com a mão: não tenho. E ele continuou me olhando, e foi aí que eu pensei: por que ele me olha assim? Por que sustenta o olhar durante tanto tempo? Talvez seja por isso que muitos motoristas fingem não notá-los. Já pensei que fosse indiferença, mas agora tenho minhas dúvidas. Talvez tenham ficado cansados de tantos olhos tristes. Mas não é só com o olhar que eles nos afetam. Semana passada um deles veio por entre os carros: tinha uma cara boa, de menino bom, e vinha com a mão estendida. O sol estava a pino, no céu não havia nuvens, e o asfalto estava quente como lava. Veio por entre os carros, sem pressa, a mão estendida. E notei seus pés descalços. Claro que a sola dos seus pés não era mais como a sola dos meus pés. Talvez, pensei, tivesse a textura de uma casca de árvore, ou de uma lixa. Pois ele não parecia sentir o calor que reverberava do asfalto, e vinha tranquilo, vestindo uma camisa enorme (todos eles vestem camisas enormes) e uma bermuda folgada, suja. E me olhou pelo para-brisa do carro e não disse nada, não fez nenhum gesto, não mudou de expressão: só me olhou enquanto eu fazia que não com a mão e com o rosto, e compunha uma expressão facial do tipo Não vai dar. E ele passou, pisando tranquilo e infalível o chão de lava. Todo dia há um moleque novo na rua; todo dia vejo uns olhos tristes e pidões; todo dia eu nego e todo dia me inquieto: por negar, por eles pedirem, por eles pisaram com pés descalços o asfalto quente. Quantos mais virão? Quantos mais aparecerão a cada dia? E que terá sido feito daqueles que lhes cederam lugar, daqueles que somem de repente? Para onde vão os que são substituídos?