quinta-feira, 26 de julho de 2012

DONA GRACINHA

Ela parece cansada. Chega com os cabelos em desalinho. Vejo olheiras sob seus olhos. Está mais magra, sem dúvida. Que será que ela tem?, me pergunto. Será o marido, que é gordo e ciumento? É o marido, decido. Tem infernizado sua vida, o mau caráter. Ou será a filha? Pode ser. A filha, muito novinha ainda, tem andado doente, a bichinha. Não é a filha, concluo. Ela me cumprimenta, sorridente como sempre (“Bom dia, doutor”, e nunca diz o meu nome). Senta-se à mesa, levanta-se, vai até o frigobar, para diante dele e medita. Há uma garrafa de café sobre o frigobar. “Está quentinho, o café”, digo. E completo: “A dona Ivanilda trouxe agorinha mesmo”. Ela se volta para mim, o dedo indicador no queixo. Sorri e diz: “Pois é, estou decidindo”. E eu volto a trabalhar, constrangido porque agora ela sabe que eu a estou observando. Sinto-me culpado por forçá-la a tomar uma decisão. Ela finalmente se decide e volta à mesa sem o café. Puxa um processo, abre gavetas, liga o computador. Ei-la, estática, diante da tela, os cotovelos na mesa, o queixo apoiado nas mãos. Está mais magra, não há dúvida. Mas continua bela. É o marido, repito. É o miserável do marido que a inferniza o dia inteiro. A coitadinha nunca deu motivo para ele ter ciúmes. Ela suspira e começa a trabalhar. Ou melhor, a fingir que trabalha. Não a culpo. O marido, o maldito marido, barrigudo e preguiçoso (o preguiçoso é por minha conta, reconheço), não a deixa em paz. Agora mesmo, à distância, monopoliza os pensamentos dela. A sombra do maldito marido gordo a persegue. “Dona Gracinha”, eu digo, “a senhora está com algum problema?” Ela tira os olhos do computador e se volta para mim, um sorriso luminoso no rosto. “Não, doutor, de jeito nenhum”. É discreta, mas seu sorriso não me engana. Eu saberia valorizar esse sorriso, penso, enquanto a observo distraída diante da tela do computador. 

FODA

Tem a história da primeira vez em que ouvi a palavra foda. Estávamos no quintal da minha casa. Era de manhã. (Ou seria no final da tarde? Lembro de tantas manhãs luminosas na minha infância... acabo pensando que tudo o que me aconteceu naquela época aconteceu de manhã. Mas agora acho que era no final da tarde. Tenho certeza, aliás, de que era no final da tarde.) Estávamos, pois, eu e um amigo mais velho, consertando minha bicicleta no quintal da minha casa. Mais um parêntese: não sei se é certo dizer que ele era meu amigo. Amigo é palavra delicada, de aplicação restrita, que não sei se se encaixa bem nesse caso. É sabido que as amizades infantis se travam normalmente entre pessoas da mesma idade. E ele era, como eu disse, mais velho do que eu. Eu tinha, sei lá, sete ou oito anos, e ele tinha uns quinze. Não era meu amigo, portanto: seu universo era muito diferente do meu; suas aspirações, suas experiências, seus gostos eram muito diferentes dos meus. Nem sei exatamente por que nossos caminhos se cruzaram; talvez porque morássemos perto um do outro. Mas não era mesmo meu amigo, pois logo nossas vidas seguiram caminhos diferentes. Mas volto à história: estávamos consertando minha bicicleta no quintal da minha casa e era um final de tarde. Lembro bem da bicicleta virada de ponta-cabeça, o guidão e o selim apoiados no chão de cimento; lembro das rodas livres, girantes. Não sei, não lembro exatamente o que tentávamos consertar, só sei que passamos boa parte da tarde empenhados em nosso mister... até que, depois de algumas (ou muitas) tentativas, finalmente conseguimos. E então, entusiasmado, ele disse uma frase incrível: “Ficou foda!” Meus olhos devem ter brilhado. Talvez naquela época, mesmo sem saber, eu já gostasse de palavras. De modo que meus olhos devem ter brilhado. “Foda?”, acho que perguntei. E ele repetiu: “É, ficou foda!” E eu entendi que tinha ficado muito bom, bacana, legal, joia. Tenho absoluta certeza de que não perguntei sobre outros possíveis significados; contentei-me com esse primeiro, que tinha entendido suficientemente bem. A coisa seguinte de que me lembro é de nos despedirmos à porta da minha casa e de eu ter pedido para ele repetir a palavra, que na minha voz – lástima – não parecia tão engraçada, nem tão sonora. E ele repetiu, satisfeito (e malicioso, pois tinha compreendido que eu não sabia exatamente o que significava foda): “É foda!” Foda. Que palavra bonita!, eu repetia, fascinado. A história poderia acabar aqui. Afinal, foi a história da primeira vez em que ouvi a palavra foda. Mas ela tem um prolongamento. À noite, no jantar, a propósito não sei do quê, comentei, entusiasmado: “É foda!”, com exclamação e tudo. Imediatamente atraí todos os olhares da família. Naquela mesma noite (ainda na mesa, na verdade) meus pais me explicaram que a palavra não era bonita, que na verdade era feia, muito feia. Talvez tenha sido essa a primeira ocasião (pelo menos é a primeira de que tenho perfeita lembrança) em que eu descobri que nem sempre as palavras valem pelo que soam, e que nem todas são tão inocentes quanto parecem. Bem. Ainda hoje ninguém me tira da cabeça que “foda” é uma palavra eufônica, sonora, simpática, divertida. Se me constranjo às vezes quando a ouço (há pessoas que a pronunciam em ambientes, digamos, pouco propícios) é só porque há décadas a sociedade vem me dizendo que é feia, feia, feia. Fica aqui a minha defesa da palavra (na circunstância certa, e com seu caráter de alegria, de diversão). Fica aqui também, por sinal, a minha defesa do ato. Se for consentido e responsável, e igualmente alegre, divertido.

terça-feira, 24 de julho de 2012

SANGUE DE BARATA

Fraco, absolutamente fraco. Se me pegasse, se me batesse; se se levantasse dessa cadeira imediatamente e me perguntasse onde eu estava e com quem; se dissesse que tem vergonha de mim e mais do que vergonha, nojo; se, enfim, mostrasse que tem sangue de verdade, como os outros homens, e não sangue de barata; se não abaixasse a cabeça, se não assumisse uma atitude que já sei exatamente qual é desde que começo a subir as escadas, desde que, aliás, abro a porta de casa, e na verdade desde muito antes: desde que saio de casa e digo que vou demorar.... Mas não. Não vai fazer nada disso. Vai fazer a mesma coisa de sempre: vai sorrir (não sei por que também sorrio; sorrio por pena, acho; sorrio por convenção, para tornar menos aguda a tristeza do nosso convívio). Trocaremos palavras amenas e então irei para o meu quarto. Ele ficará à janela, como sempre. E mais tarde, à noite, na cama, vai me desejar boa-noite, um boa-noite triste, como se me culpasse (ou pior, como se se desculpasse). E no dia seguinte, de manhã, vai me dar bom-dia, como todos os dias. Bom-dia! Como se nada tivesse acontecido ou como se quisesse acreditar que nada aconteceu.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

PASSARINHO VERDE

Não era a primeira vez nem seria a última. Quer dizer, seria. Ele estava no quarto de cima. Ela subiu as escadas devagar (ele estava digitando no computador quando ela abriu a porta; ele parou e ficou ouvindo) e quando chegou lá em cima (ele teve uma súbita vergonha de estar usando uma camisa branca velha, encardida, e a bermuda folgada, desbotada, de que ela tanto reclamava) sorriu daquele jeito de sempre: o sorriso de quem não quer sorrir, de quem sorri apenas por obrigação, e fala, e beija, ai, e vive sob o mesmo teto. Não é a primeira vez, pensou. Mas seria a última. Trocaram as palavras de sempre, que sabiam a ranço, cansaço e tristeza. Ela se afastou, foi para o quarto. Ele foi até a janela. Naquela mesma noite, enquanto ela dormisse, arrumaria a mala. Imaginou a sala escura, de madrugada. E teve certeza de que no dia seguinte, quando ela chegasse ao trabalho, as colegas diriam: "Você está diferente, parece que viu um passarinho verde".