sábado, 30 de junho de 2012

SÃO PEDRO

Já ninguém vem se hospedar na pousada. O frio e a chuva, mesmo poucos, espantaram os turistas que, nessa terra de muito sol e calor, querem apenas muito sol e calor. Choveu a noite inteira e agora estiou. É noite de São Pedro. Os carros passam, lentos, fazendo barulho nas poças. Sei que há fogueiras nas ruas, e fumaça. Da janela do meu prédio observo o pátio da pousada, onde uma noite vi turistas de várias nacionalidades reunidos num sarau animado e confuso. Agora, no pátio, varais estendidos de uma ponta a outra dos muros ostentam roupas e lençóis que oscilam lentos na brisa fria. Daqui a alguns meses os varais e as roupas e os lençóis desaparecerão. Daqui a alguns meses o pátio estará cheio de gente de novo. Daqui a alguns meses as vozes e o barulho da música (“É forró de pé-de-serra”, dizia a morena brasileira para o gringo que não entendia nada, que parecia contente só de olhar para ela, só de sonhar com a promessa daquela noite de sexta-feira) subirão novamente até a janela do meu quarto. Por enquanto há silêncio na pousada. Seus donos estão lá dentro, sem dúvida encolhidos diante da televisão. No pátio oscilam as roupas e os lençóis. Ao lado, para além do muro branco, os carros fazem barulho nas poças. 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

INFÂNCIA

Houve uma tarde em que minha mãe me levou ao colégio em que ela ensinava. Parece (creio que me disseram depois) que ela não tinha com quem me deixar em casa. Lembro que ela me sentou sobre o birô, lembro da imensa lousa verde, embutida na parede, e lembro também que fiz sucesso entre seus alunos. De mais nada me lembro, só disto: era de tarde, eu sentado no birô, a lousa verde enorme, as palavras carinhosas dos alunos. Vem-me à mente outra lembrança daquele colégio, sem dúvida de outra ocasião: estou à beira de uma quadra ao ar livre e meus pais estão ao meu lado, conversando com algum adulto. Observo outras crianças correndo pela quadra em trajetórias caóticas, desordenadas. Não posso dizer se ouvia seus gritos ou se os estou imaginando agora, para completar o quadro. Que coisa comovente é a infância! Hoje, quando vejo um bebezinho ou uma criança no colo do pai ou da mãe, perscrutando o mundo com olhos arregalados, comove-me pensar que sua memória guardará, desses momentos, imagens nebulosas, manchas coloridas, sons confusos. Minha mãe me sentou no birô, na sala de aula. Quantos anos eu tinha? Não faço a menor ideia. Talvez três ou quatro. Antes disso, do que me lembro? De borrões, de imagens vagas. Sequer posso garantir que aconteceram antes do episódio do colégio. Que coisas eu vi quando era ainda mais novo? Que coisas eu vi quando tinha seis meses? Quantas pessoas se debruçaram sobre mim, falando, cantando, me fazendo mimos, enquanto trocavam minhas fraldas? Que coisas eu vi – que rostos, que expressões – quando, ao colo dos meus pais, debruçado sobre seus ombros, meus olhos se surpreendiam com a diversidade do mundo?

quarta-feira, 13 de junho de 2012

DE UMA FOTO

Poucas vezes o famoso escritor parece à vontade diante das câmeras, e esta não é uma delas. Seus lábios estão crispados num arremedo de sorriso (só a convenção indica que sorri) e seus olhos, embora benévolos, pacientes ou resignados, não disfarçam seu desconforto. Sorri, o famoso escritor, porque nessas circunstâncias parece que é de bom tom sorrir. Nota-se, porém, que seus olhos atravessam a câmera, o fotógrafo e o leitor e perdem-se mais além, talvez em casa, talvez no sofá, talvez na cama. Sim, talvez gostasse de estar na cama agora o famoso escritor. É como se nesta foto, ainda mais que nas outras, não conseguisse disfarçar o constrangimento de o considerarem, que bobagem, um grande escritor. Está representando um papel, o famoso escritor, e sente-se canastrão nesse papel, como, aliás, em qualquer outro em que o queiram colocar que não seja o seu próprio, o de escritor apenas, sem adjetivos.

terça-feira, 5 de junho de 2012

SONHO

Eu ouvia a voz dela no rádio e me apaixonava perdidamente. Por uma voz, eu me dizia, sozinho na madrugada insone, logo por uma voz, eu me dizia. E era uma voz de menina e de mulher, e eu imaginava um rosto suave como seda e eu imaginava uns cabelos suaves e frescos como uma noite de primavera e eu imaginava um sorriso de dentes perfeitos e me dizia, irremediavelmente apaixonado ou me apaixonando irremediavelmente, eu me dizia, Quem será, quem será, e esperava que o locutor, cujo nome eu não sabia, esperava que o locutor mencionasse o nome dela, ou que ela mesma, como a gente costuma fazer, dissesse algo do tipo, Então minha mãe me disse, Laura (ou Maria ou Beatriz ou Luisa), a vida é dura (a mãe dela estava dizendo), a vida é dura e você tem que seguir em frente. Porque ela estava justamente falando da vida, contando suas histórias com tanta graça, com uma voz tão doce. Mas nem ela nem o locutor disseram nome nenhum, nada, e eu me pus a imaginar que os outros ouvintes, se é que havia outros ouvintes, sabiam seu nome, e eu me pus a imaginar que sairia perguntando para os meus amigos, primeiro os amigos e depois os desconhecidos, se eles tinham ouvido a entrevista da madrugada do dia tal naquela rádio obscura cujo nome eu não conhecia nem a frequência eu sabia qual era, pois estava escuro no meu quarto escuro enquanto eu mudava de faixa. Então eu perguntaria, não sei se fingindo um vago interesse ou se abertamente assumindo meu desespero apaixonado, eu perguntaria e eles responderiam que não, que não tinham ouvido a tal entrevista, e eu começaria a achar que tudo tinha sido um sonho, eu estava sonhando, eu não estava acordado mas sonhando, um sonho sem imagens, um sonho só de voz, sonhei que ouvia no rádio uma voz doce e suave, que falava da vida de um modo tão doce e tão terno, como uma amiga antiga falaria ao meu ouvido, e mesmo que não fosse sonho aquela voz na madrugada, mesmo assim eu não a ouviria jamais, eu jamais ouviria aquela voz novamente, pois ninguém sabe, ninguém conhece, ninguém nunca ouviu aquela entrevista.