Já
ninguém vem se hospedar na pousada. O frio e a chuva, mesmo poucos,
espantaram os turistas que, nessa terra de muito sol e calor, querem
apenas muito sol e calor. Choveu a noite inteira e agora estiou. É
noite de São Pedro. Os carros passam, lentos, fazendo barulho nas
poças. Sei que há fogueiras nas ruas, e fumaça. Da janela do meu
prédio observo o pátio da pousada, onde uma noite vi turistas de
várias nacionalidades reunidos num sarau animado e confuso. Agora,
no pátio, varais estendidos de uma ponta a outra dos muros ostentam
roupas e lençóis que oscilam lentos na brisa fria. Daqui a alguns
meses os varais e as roupas e os lençóis desaparecerão. Daqui a
alguns meses o pátio estará cheio de gente de novo. Daqui a alguns
meses as vozes e o barulho da música (“É forró de pé-de-serra”,
dizia a morena brasileira para o gringo que não entendia nada, que
parecia contente só de olhar para ela, só de sonhar com a promessa
daquela noite de sexta-feira) subirão novamente até a janela do meu
quarto. Por enquanto há silêncio na pousada. Seus donos estão lá
dentro, sem dúvida encolhidos diante da televisão. No pátio
oscilam as roupas e os lençóis. Ao lado, para além do muro branco,
os carros fazem barulho nas poças.
sábado, 30 de junho de 2012
segunda-feira, 25 de junho de 2012
INFÂNCIA
Houve
uma tarde em que minha mãe me levou ao colégio em que ela ensinava.
Parece (creio que me disseram depois) que ela não tinha com quem me
deixar em casa. Lembro que ela me sentou sobre o birô, lembro da
imensa lousa verde, embutida na parede, e lembro também que fiz
sucesso entre seus alunos. De mais nada me lembro, só disto: era de
tarde, eu sentado no birô, a lousa verde enorme, as palavras
carinhosas dos alunos. Vem-me à mente outra lembrança daquele
colégio, sem dúvida de outra ocasião: estou à beira de uma quadra
ao ar livre e meus pais estão ao meu lado, conversando com algum
adulto. Observo outras crianças correndo pela quadra em trajetórias
caóticas, desordenadas. Não posso dizer se ouvia seus gritos ou se
os estou imaginando agora, para completar o quadro. Que coisa
comovente é a infância! Hoje, quando vejo um bebezinho ou uma
criança no colo do pai ou da mãe, perscrutando o mundo com olhos
arregalados, comove-me pensar que sua memória guardará, desses momentos, imagens nebulosas, manchas coloridas, sons confusos. Minha
mãe me sentou no birô, na sala de aula. Quantos anos eu tinha? Não
faço a menor ideia. Talvez três ou quatro. Antes disso, do que me
lembro? De borrões, de imagens vagas. Sequer posso garantir que
aconteceram antes do episódio do colégio. Que coisas eu vi quando
era ainda mais novo? Que coisas eu vi quando tinha seis meses?
Quantas pessoas se debruçaram sobre mim, falando, cantando, me
fazendo mimos, enquanto trocavam minhas fraldas? Que coisas eu vi –
que rostos, que expressões – quando, ao colo dos meus pais,
debruçado sobre seus ombros, meus olhos se surpreendiam com a
diversidade do mundo?
quarta-feira, 13 de junho de 2012
DE UMA FOTO
Poucas
vezes o famoso escritor parece à vontade diante das câmeras, e esta
não é uma delas. Seus lábios estão crispados num arremedo de
sorriso (só a convenção indica que sorri) e seus olhos, embora
benévolos, pacientes ou resignados, não disfarçam seu desconforto.
Sorri, o famoso escritor, porque nessas circunstâncias parece que é
de bom tom sorrir. Nota-se, porém, que seus olhos atravessam
a câmera, o fotógrafo e o leitor e perdem-se mais além, talvez em
casa, talvez no sofá, talvez na cama. Sim, talvez gostasse de estar
na cama agora o famoso escritor. É como se nesta foto, ainda mais
que nas outras, não conseguisse disfarçar o constrangimento de o
considerarem, que bobagem, um grande escritor. Está representando um
papel, o famoso escritor, e sente-se canastrão nesse papel, como,
aliás, em qualquer outro em que o queiram colocar que não seja o
seu próprio, o de escritor apenas, sem adjetivos.
terça-feira, 5 de junho de 2012
SONHO
Eu
ouvia a voz dela no rádio e me apaixonava perdidamente.
Por uma voz, eu me dizia, sozinho na madrugada insone, logo por uma
voz, eu me dizia. E era uma voz de menina e de mulher, e eu imaginava
um rosto suave como seda e eu imaginava uns cabelos suaves e frescos
como uma noite de primavera e eu imaginava um sorriso de dentes
perfeitos e me dizia, irremediavelmente apaixonado ou me apaixonando
irremediavelmente, eu me dizia, Quem será, quem será, e esperava
que o locutor, cujo nome eu não sabia, esperava que o locutor
mencionasse o nome dela, ou que ela mesma, como a gente costuma
fazer, dissesse algo do tipo, Então minha mãe me disse, Laura (ou
Maria ou Beatriz ou Luisa), a vida é dura (a mãe dela estava
dizendo), a vida é dura e você tem que seguir em frente. Porque ela
estava justamente falando da vida, contando suas histórias com tanta
graça, com uma voz tão doce. Mas nem ela nem o locutor disseram
nome nenhum, nada, e eu me pus a imaginar que os outros ouvintes, se
é que havia outros ouvintes, sabiam seu nome, e eu me pus a
imaginar que sairia perguntando para os meus amigos, primeiro os
amigos e depois os desconhecidos, se eles tinham ouvido a entrevista
da madrugada do dia tal naquela rádio obscura cujo nome eu não
conhecia nem a frequência eu sabia qual era, pois estava escuro no
meu quarto escuro enquanto eu mudava de faixa. Então eu perguntaria,
não sei se fingindo um vago interesse ou se abertamente assumindo
meu desespero apaixonado, eu perguntaria e eles responderiam que não,
que não tinham ouvido a tal entrevista, e eu começaria a achar que
tudo tinha sido um sonho, eu estava sonhando, eu não estava acordado
mas sonhando, um sonho sem imagens, um sonho só de voz, sonhei que
ouvia no rádio uma voz doce e suave, que falava da vida de um modo
tão doce e tão terno, como uma amiga antiga falaria ao meu ouvido,
e mesmo que não fosse sonho aquela voz na madrugada, mesmo assim eu
não a ouviria jamais, eu jamais ouviria aquela voz novamente, pois
ninguém sabe, ninguém conhece, ninguém nunca ouviu aquela entrevista.
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