quarta-feira, 21 de março de 2012

QUESTÃO DE ESTILO

Eu já vinha pensando nisso. E eis que ontem, ao ler uma entrevista mais ou menos antiga que Javier Marías concedeu a Juan Gabriel Vásquez, deparei-me com o seguinte trecho, que vai por mim livremente traduzido:

Veja, a palavra “estilo” se usa cada vez menos e é cada vez mais desdenhada: como não é científica... Mas a mim me parece uma palavra útil, e, além do mais, ainda que não seja fácil de definir, creio que o estilo existe. Mas isso, sim, existe cada vez menos: se a pessoa se depara com um filme de Hitchcock na televisão, bastam três planos para dizer: “Isto é de Hitchcock”. O mesmo acontece com John Ford, com Orson Welles... […] Em literatura […] também tenho a sensação de que começam a aparecer autores que não têm maior interesse em ter uma voz reconhecível. A mim me agrada que haja uma voz reconhecível. Gosto que os filmes de Hitchcock se pareçam com Hitchcock. E se há um que se parece menos, pois este me agrada menos. O mesmo acontece com Conrad ou com Henry James, para mencionar dois autores cujo estilo é instantaneamente reconhecível.”

Pois eu vinha pensando nisso. Tenho lido coisas que não sei se são de fulano, de beltrano ou de sicrano. Por que eu leria fulano, se o que ele escreve não se distingue do que escreve beltrano? Ou por outra: por que leio Javier Marías, ou Conrad, ou Bernhard, ou Nelson Rodrigues, ou Graciliano Ramos?

segunda-feira, 19 de março de 2012

A NOITE ESTÁ SÓ COMEÇANDO

Ela é morena, bem brasileira, do jeito que os gringos gostam. Ela diz: "É forró de pé-de-serra", e os gringos não entendem nada. Ela requebra e repete: "Forró de pé-de-serra". E continua dançando, um copo na mão. "Tradicional", diz. "É uma música tradicional". E os gringos parecem começar a entender. Um fala inglês, outro italiano, outro castelhano. Julgo ter ouvido algo parecido com o alemão. O que fala castelhano agora está tomando aulas de forró. É duro como pau de vassoura, e a certa altura desiste: solta-se, remexe os braços, agacha-se diante da morena, que parece sorrir. Daqui de cima, da janela do meu quarto, no sexto andar, não consigo vê-los direito lá embaixo. Não há dúvida de que a pousada é um sucesso. Prova de que a propaganda boca a boca funciona: quem vem volta contando que a pousada é boa, a gente se diverte muito, coisa simples, sabe?, os quartos nos fundos, num puxadinho, umas redes na lateral, ontem a gente dançou e bebeu a noite toda com umas brasileiras etc., etc. A pousada vive cheia, mesmo nos períodos de baixa temporada. Daqui de cima, os cotovelos bem apoiados no peitoril da janela, vejo-os para lá e para cá no pátio pequeno, entre a casa, onde provavelmente moram os proprietários, e os quartos dos fundos, onde provavelmente ficam os alojamentos. Um dos gringos, o que fala inglês, um sujeito de cabelos e cavanhaque brancos, mais animado que os outros, provavelmente mais bêbado também, enfia uma sacola plástica na cabeça e sorri de modo estranho: ru, ru, ru, enquanto aponta para uma das brasileiras, que requebra distraída. Enquanto isso, o italiano começa uma brincadeira sem pé nem cabeça: levanta um braço, o dedo indicador em riste, e se dirige a uma das brasileiras; desce o braço devagar, o dedo ainda em riste, e toca na ponta da cabeça dela, e aí ela começa a girar sobre si mesma enquanto levanta o braço imitando o italiano e se dirige ao argentino (ou chileno, ou uruguaio, ou peruano, sei lá) e o toca com o dedo em riste, e este também começa a girar, levantando o braco, etc., etc. Um loiro, de cabelo longo preso num rabo de cavalo, aparece no pátio, inclina-se sobre uma caixa de isopor e desaparece: provavelmente pegou uma cerveja. Um sujeito magro, que eu não tinha visto até então, surge pela lateral e para no meio do pátio, um copo na mão, conversando com alguém que não posso ver. Quantas pessoas mais, me pergunto, estão lá dentro? Afasto-me da janela para escovar os dentes e ouço uma onda de risos. O forró continua. A gringalhada, penso, enquanto escovo os dentes diante do espelho, vai ter o que contar quando chegar em casa. A noite está só começando.

quinta-feira, 15 de março de 2012

NEGRA NÚBIA

É uma visão que ainda hoje me inquieta, passados já muitos meses. Já lhes contarei. Um dia, em Bogotá, numa rua de cujo nome já não me lembro (era no centro da cidade) vi uma negra belíssima. Enorme e altiva. Magnífica. Pensei na hora, de olhos arregalados e queixo caído: É descendente direta das negras núbias do vale do Nilo. Usava um vestido branco colado ao corpo, um desses vestidos que parecem ter vida própria e que insistem em subir pelas pernas, sempre e cada vez mais, como que empenhados em desnudá-las, as pernas, e, se possível, todo o resto do corpo. Uma devoradora de homens, completei, abismado. Estava parada diante de um sobradão antigo, de porta e janelas, cercada de outras mulheres, menores que ela e mais acanhadas, ainda que bonitas. O táxi passou (eu estava num táxi, a cara colada ao vidro da janela) e se perdeu por entre as ruas sujas do centro da cidade. Bem. Era a primeira vez que eu ia a Bogotá, e, naquele preciso momento, a cara colada ao vidro da janela, eu tentava absorver a cidade, como faço com todos os lugares que ainda não conheço. Enveredou o táxi, como eu dizia, pelas ruas sujas do centro, e vi prédios velhos e muros cheios de pichações. Era um final de tarde. A janela do táxi já me mostrava outras paisagens: comerciantes à porta de suas lojas, estudantes voltando para casa, pedestres distraídos. Mas não me saía da cabeça a imagem de um minuto atrás: as meninas conversando animadamente à porta do sobrado, a negra núbia entre elas. O homem que buscasse aconchego e alívio naquele harém (pois era um harém) teria que entrar por aquela porta estreita (nem sempre é larga a porta que leva à perdição) e subir por uma escada velha e escura, que o levaria ao primeiro andar. As meninas, eu não tinha dúvida, não fariam mal nenhum aos seus clientes. Risonhas e jovens, lembravam-me mais as borboletinhas italianas do conto A santa, de Gabriel García Márquez (por um instante imaginei tê-las visto vestidas de organdi azul, de popelina cor-de-rosa, de linho verde), e, pelo modo como riam e brincavam entre si, pareciam mais propensas a uma doce guerra de travesseiros que ao trabalho diário, digno mas duro, de apascentar os inquietos corpos dos homens. Mas a negra núbia, ah, essa era diferente. Embora também sorrisse, despreocupada, e parecesse participar das bricandeiras das colegas, dela eu podia intuir: tinha um apetite voraz. Não se esquivaria aos clientes. E pelo contrário: conduzi-los-ia lenta e deliberadamente pela escada escura. Dentro do quarto, ofertar-lhes-ia prazeres terríveis, que os há, e então, quando se esgotassem, quando estivessem derribados na cama desfeita, inermes, incapazes de opor qualquer resistência, comê-los-ia vivos, bem devagar, como a viúva negra come o macho que a fecunda ou que às vezes nem chegou a tanto, o coitado. Ainda assim, eu tinha certeza, ela era a mais assediada, a mais procurada: era ela a que os corajosos escolhiam, trêmulos de determinismo biológico, pois ao homem, tal qual ao macho da viúva negra, não lhe é dado fazer outra coisa senão cumprir o seu destino, uma vez e sempre. Enquanto o táxi passava e a imagem se assentava em minha memória, pude ver a negra sorrir. Seus dentes brancos, lácteos, perfeitos, emoldurados por lábios que eram pura promessa, eram a prova cabal de que as minhas impressões estavam certas. Imediatamente tratei de esquecer o nome da rua. Mas deliberei, claro, guardar na lembrança a luz matizada daquela tarde, e o impacto estético e físico que aquela negra me causava: alta como uma torre, dominava suas colegas como um forte imponente domina a paisagem no deserto ao seu redor. Ainda hoje, quando me lembro daquela visão, se me arrepiam os cabelos. Que técnicas ancestrais, me pergunto, a medo, que segredos inomináveis dominava aquela negra?

sexta-feira, 9 de março de 2012

A VIDA É ESTA

Eis que vou até a estante e pego o Cisne de feltro, do Paulo Mendes Campos. Há alguns dias, não sei exatamente por que (as saudades literárias surgem do nada, ou de muito pouco, como, aliás, a maioria das saudades), tive a ideia de relê-lo. Há quanto tempo não o lia? Três, quatro anos? Eis que folheio o livro, à procura de uma boa crônica. (Um parêntese: como escrevia bem, o Paulinho! Será que há gente escrevendo como escreviam o Paulo Mendes Campos, o Rubem Braga, o Fernando Sabino, o Otto Lara Resende? A crônica, aquele registro coloquial, doce, suave e descompromissado – mas nem por isso superficial –, morreu?) Deparo-me, pois, com uma crônica chamada Rua da Bahia. A Rua da Bahia, segundo o Paulinho, era uma rua quase mítica (“a Rua da Bahia era naquele trecho o lado feérico dos habitantes, a fantasia, a inquietação”), um local aonde as pessoas iam para satisfazer – ou tentar satisfazer – seus desejos, uns mais confessáveis que outros. Os detalhes, bem, só lendo a crônica. Mas o que importa dizer é que quando li a crônica pela primeira vez, ela não despertou em mim nenhum sentimento especial. Creio mesmo não tê-la considerado das mais interessantes. Mal sabia eu, então, que anos depois, e completamente esquecido de tê-la lido, percorreria a Bahia atento às suas lojas, às suas calçadas velhas, aos seus prédios antigos. Era um sábado à tarde, e a Bahia, e na verdade toda a Belo Horizonte (como qualquer cidade de interior que se preze), estava fechada. Pois bem. Eis que agora, ao reler a crônica, caio numa espécie de estupor: como o mundo dá voltas! Naquela época não podia imaginar jamais ir a Belo Horizonte! Que tinha eu com Minas? Que tinha eu com Belo Horizonte? Minas e Belô, para mim, eram duas coisas: o Clube da Esquina (o Milton Nascimento, o Beto Guedes, o Lô e o Márcio Borges, o Toninho Horta, etc.) e um outro clube, sem nome: o Paulo Mendes Campos, o Fernando Sabino, o Otto, o Hélio Pellegrino. Alcançava-os com discos e livros, sem precisar sair de Arapiraca. E eis que anos depois, por caminhos e motivos inescrutáveis, chego a Belo Horizonte pela terceira vez (sou quase um habitué) e me hospedo no velhíssimo Othon da Afonso Pena, diante do Parque Municipal, ao lado da Rua da Bahia. E subo a Bahia e desço a Bahia, e vejo, gravada numa escultura, no cruzamento com a Avenida Álvares Cabral e com a Rua dos Guarajaras, a frase referida por Paulinho logo no início da crônica: A vida é esta, descer Bahia subir Floresta. A Bahia eu subi e desci; o bairro da Floresta, mais para lá, do outro lado da Afonso Pena, eu vi de longe, da janela do meu quarto: preferi não descer. Mas concordo: a vida é esta.

segunda-feira, 5 de março de 2012

ADEUS, MENINA

Nós a vimos no Píer 11, sentada num banco de madeira. Era um dia frio, de céu de muitas nuvens: um dia frio e ventoso, como costumam ser os dias de inverno em Nova Iorque. Loira, cabelos cortados à altura do pescoço, olhos claros, não me lembro se azuis ou verdes. Estava bem protegida: sobretudo beje com a gola levantada, botas escuras. De pernas cruzadas, conversava, por assim dizer, com seu iPhone: enquanto falava, segurava-o com a mão direita diante do rosto. Ah, as maravilhas da tecnologia, pensei. O amor no século vinte e um. O namorado, noivo, marido, sei lá, estava em outra cidade, talvez em outro país, e não havia alternativa ao casal senão matar a saudade através do FaceTime ou de outro software. Nós passamos, fomos até a ponta do pier, tiramos umas fotos do Brooklyn lá do outro lado, contemplamos os plácidos ferries, congelamos um pouco e decidimos voltar. Quando passamos por ela, tinha se levantado e estava girando lentamente sobre o próprio eixo, o celular ainda erguido à altura do rosto: mostrava a paisagem ao amado. Conversava e ria, e em seu riso notei uma nota de tristeza. É justo, pensei. Não é possível estar completamente feliz, ou razoavalmente feliz, quando o amado não está por perto. Era uma tarde de domingo, tinha esquecido de dizer. Um final de tarde de domingo, para ser mais específico. Então imaginem: um final de tarde de domingo, com frio e vento em Nova Iorque. Ela se despediu, guardou o celular e se dirigiu a uma fila ali perto, certamente a fila do ferry para o Brooklyn. Adeus, menina, não nos veremos jamais, eu lhe disse em pensamento. Seguimos adiante, descemos na estação de metrô errada, tornamos a subir, voltamos sobre os próprios passos e enfim acertamos: agora sim, tomaríamos o metrô destino uptown. E qual não foi minha surpresa quando entramos no vagão e eu a vi novamente, sentada de pernas cruzadas. Tinha um ar ausente, como convém às mulheres enamoradas, especialmente se é domingo e se faz frio em Nova Iorque. Não me olhou nem uma vez enquanto chacoalhávamos em alta velocidade rumo aos nossos destinos. Provavelmente sequer percebeu que os estranhos em pé diante dela também tinham estado no píer. Desceu primeiro que nós, dez minutos depois. Pelas janelas do vagão ainda pude vê-la de costas, olhando à esquerda e à direita. Parecia não saber que destino tomar. O metrô ganhou velocidade, afastou-se em direção à Times Square e eu fiquei pensando em como este mundo é pequeno, em como as distâncias são relativas e em como desta vez, sim, eu podia dizer Adeus, menina, não nos veremos jamais.