quinta-feira, 26 de julho de 2012

FODA

Tem a história da primeira vez em que ouvi a palavra foda. Estávamos no quintal da minha casa. Era de manhã. (Ou seria no final da tarde? Lembro de tantas manhãs luminosas na minha infância... acabo pensando que tudo o que me aconteceu naquela época aconteceu de manhã. Mas agora acho que era no final da tarde. Tenho certeza, aliás, de que era no final da tarde.) Estávamos, pois, eu e um amigo mais velho, consertando minha bicicleta no quintal da minha casa. Mais um parêntese: não sei se é certo dizer que ele era meu amigo. Amigo é palavra delicada, de aplicação restrita, que não sei se se encaixa bem nesse caso. É sabido que as amizades infantis se travam normalmente entre pessoas da mesma idade. E ele era, como eu disse, mais velho do que eu. Eu tinha, sei lá, sete ou oito anos, e ele tinha uns quinze. Não era meu amigo, portanto: seu universo era muito diferente do meu; suas aspirações, suas experiências, seus gostos eram muito diferentes dos meus. Nem sei exatamente por que nossos caminhos se cruzaram; talvez porque morássemos perto um do outro. Mas não era mesmo meu amigo, pois logo nossas vidas seguiram caminhos diferentes. Mas volto à história: estávamos consertando minha bicicleta no quintal da minha casa e era um final de tarde. Lembro bem da bicicleta virada de ponta-cabeça, o guidão e o selim apoiados no chão de cimento; lembro das rodas livres, girantes. Não sei, não lembro exatamente o que tentávamos consertar, só sei que passamos boa parte da tarde empenhados em nosso mister... até que, depois de algumas (ou muitas) tentativas, finalmente conseguimos. E então, entusiasmado, ele disse uma frase incrível: “Ficou foda!” Meus olhos devem ter brilhado. Talvez naquela época, mesmo sem saber, eu já gostasse de palavras. De modo que meus olhos devem ter brilhado. “Foda?”, acho que perguntei. E ele repetiu: “É, ficou foda!” E eu entendi que tinha ficado muito bom, bacana, legal, joia. Tenho absoluta certeza de que não perguntei sobre outros possíveis significados; contentei-me com esse primeiro, que tinha entendido suficientemente bem. A coisa seguinte de que me lembro é de nos despedirmos à porta da minha casa e de eu ter pedido para ele repetir a palavra, que na minha voz – lástima – não parecia tão engraçada, nem tão sonora. E ele repetiu, satisfeito (e malicioso, pois tinha compreendido que eu não sabia exatamente o que significava foda): “É foda!” Foda. Que palavra bonita!, eu repetia, fascinado. A história poderia acabar aqui. Afinal, foi a história da primeira vez em que ouvi a palavra foda. Mas ela tem um prolongamento. À noite, no jantar, a propósito não sei do quê, comentei, entusiasmado: “É foda!”, com exclamação e tudo. Imediatamente atraí todos os olhares da família. Naquela mesma noite (ainda na mesa, na verdade) meus pais me explicaram que a palavra não era bonita, que na verdade era feia, muito feia. Talvez tenha sido essa a primeira ocasião (pelo menos é a primeira de que tenho perfeita lembrança) em que eu descobri que nem sempre as palavras valem pelo que soam, e que nem todas são tão inocentes quanto parecem. Bem. Ainda hoje ninguém me tira da cabeça que “foda” é uma palavra eufônica, sonora, simpática, divertida. Se me constranjo às vezes quando a ouço (há pessoas que a pronunciam em ambientes, digamos, pouco propícios) é só porque há décadas a sociedade vem me dizendo que é feia, feia, feia. Fica aqui a minha defesa da palavra (na circunstância certa, e com seu caráter de alegria, de diversão). Fica aqui também, por sinal, a minha defesa do ato. Se for consentido e responsável, e igualmente alegre, divertido.

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