quinta-feira, 15 de março de 2012

NEGRA NÚBIA

É uma visão que ainda hoje me inquieta, passados já muitos meses. Já lhes contarei. Um dia, em Bogotá, numa rua de cujo nome já não me lembro (era no centro da cidade) vi uma negra belíssima. Enorme e altiva. Magnífica. Pensei na hora, de olhos arregalados e queixo caído: É descendente direta das negras núbias do vale do Nilo. Usava um vestido branco colado ao corpo, um desses vestidos que parecem ter vida própria e que insistem em subir pelas pernas, sempre e cada vez mais, como que empenhados em desnudá-las, as pernas, e, se possível, todo o resto do corpo. Uma devoradora de homens, completei, abismado. Estava parada diante de um sobradão antigo, de porta e janelas, cercada de outras mulheres, menores que ela e mais acanhadas, ainda que bonitas. O táxi passou (eu estava num táxi, a cara colada ao vidro da janela) e se perdeu por entre as ruas sujas do centro da cidade. Bem. Era a primeira vez que eu ia a Bogotá, e, naquele preciso momento, a cara colada ao vidro da janela, eu tentava absorver a cidade, como faço com todos os lugares que ainda não conheço. Enveredou o táxi, como eu dizia, pelas ruas sujas do centro, e vi prédios velhos e muros cheios de pichações. Era um final de tarde. A janela do táxi já me mostrava outras paisagens: comerciantes à porta de suas lojas, estudantes voltando para casa, pedestres distraídos. Mas não me saía da cabeça a imagem de um minuto atrás: as meninas conversando animadamente à porta do sobrado, a negra núbia entre elas. O homem que buscasse aconchego e alívio naquele harém (pois era um harém) teria que entrar por aquela porta estreita (nem sempre é larga a porta que leva à perdição) e subir por uma escada velha e escura, que o levaria ao primeiro andar. As meninas, eu não tinha dúvida, não fariam mal nenhum aos seus clientes. Risonhas e jovens, lembravam-me mais as borboletinhas italianas do conto A santa, de Gabriel García Márquez (por um instante imaginei tê-las visto vestidas de organdi azul, de popelina cor-de-rosa, de linho verde), e, pelo modo como riam e brincavam entre si, pareciam mais propensas a uma doce guerra de travesseiros que ao trabalho diário, digno mas duro, de apascentar os inquietos corpos dos homens. Mas a negra núbia, ah, essa era diferente. Embora também sorrisse, despreocupada, e parecesse participar das bricandeiras das colegas, dela eu podia intuir: tinha um apetite voraz. Não se esquivaria aos clientes. E pelo contrário: conduzi-los-ia lenta e deliberadamente pela escada escura. Dentro do quarto, ofertar-lhes-ia prazeres terríveis, que os há, e então, quando se esgotassem, quando estivessem derribados na cama desfeita, inermes, incapazes de opor qualquer resistência, comê-los-ia vivos, bem devagar, como a viúva negra come o macho que a fecunda ou que às vezes nem chegou a tanto, o coitado. Ainda assim, eu tinha certeza, ela era a mais assediada, a mais procurada: era ela a que os corajosos escolhiam, trêmulos de determinismo biológico, pois ao homem, tal qual ao macho da viúva negra, não lhe é dado fazer outra coisa senão cumprir o seu destino, uma vez e sempre. Enquanto o táxi passava e a imagem se assentava em minha memória, pude ver a negra sorrir. Seus dentes brancos, lácteos, perfeitos, emoldurados por lábios que eram pura promessa, eram a prova cabal de que as minhas impressões estavam certas. Imediatamente tratei de esquecer o nome da rua. Mas deliberei, claro, guardar na lembrança a luz matizada daquela tarde, e o impacto estético e físico que aquela negra me causava: alta como uma torre, dominava suas colegas como um forte imponente domina a paisagem no deserto ao seu redor. Ainda hoje, quando me lembro daquela visão, se me arrepiam os cabelos. Que técnicas ancestrais, me pergunto, a medo, que segredos inomináveis dominava aquela negra?

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