segunda-feira, 9 de abril de 2012
SINA
Desta
história sei pouco, pois a ouvi indiretamente, mas tive o prazer de
conhecer sua protagonista durante um final de semana. Me disseram que
de início ela morava com o pai, que lhe dava surras inexplicáveis. (Da mãe, ela havia dito, nunca
tinha apanhado; o problema era que a mãe levava estranhos para casa: Meu destino ia ser muito pior, dissera, ao referir-se à possibilidade de ter ido morar com a mãe.) Certo
dia, num de seus inexplicáveis acessos de raiva, o pai lhe deu uma surra com uma tábua. Nunca sangrou
tanto na vida. As marcas
estavam lá, nas costas, para quem quisesse ver. Mas parece que os sofrimentos não deixaram mossa. Ela fala com uma
honestidade despretensiosa. Seu modo é modesto e humilde; sua expressão é
de índia ingênua. Pequenininha, muito pequena para os seus treze
anos, tudo nela é suave e brando e educado. E, não posso esquecer,
sua alegria espontânea irrompe de repente em risadas infantis que
desarmam quem as ouve. Parece, não estou bem certo quanto a isso,
que depois foi levada para morar com uma tia. Esta também alimentava
instintos sádicos e a surrava com incompreensível prazer. Ela
simplesmente não entendia. Por que aquela violência gratuita? Por
que aquelas surras absurdas? Então, por uma benéfica conjunção de fatores,
chegara à família que a acolhera. Parece que a tia se cansara dela,
não sei, e a entregara para cuidar de uma senhora idosa. Mas antes tinha que sofrer mais um pouco. Contaram-me que o pai ou o marido
da tia a tinha molestado. Que sina. No domingo, pouco antes de me despedir
dela (não nos veremos durante muito tempo) eu a olhei não com
outros olhos, que não é possível, mas sob nova luz: aquela plácida
expressão de bem-estar, aquele riso infantil e puro, aqueles olhos
vivos e brilhantes, tudo nela me surpreendia. Eu me perguntava como
era possível que ela não amaldiçoasse a humanidade inteira e, em
especial, os homens, ou como não tinha ganas de enlouquecer
espontaneamente, de dor e de raiva, ou como podia sorrir e
simplesmente viver como se nada daquilo pudesse afetar seu espírito
benfazejo. Com que coisas sonhava à noite?, eu me perguntava. Quando
me despedi, disse sinceramente (como tão poucas vezes já disse) que
tinha sido um prazer conhecê-la. E emendei um Obrigado ainda mais sincero (porque ela
nos ajudara de um modo que não vem ao caso relatar). Ela sorriu acanhadamente, olhando para baixo, e disse De
nada. Parecia vivamente surpresa
de que pudessem agradecer-lhe por alguma coisa.
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