sexta-feira, 27 de abril de 2012

FROR, PROFESSORA, FROR

Ontem, lendo o Livro de Crônicas do Lobo Antunes, dei com a seguinte frase: "O Nicolau era ruivo: existe sempre um ruivo em cada turma". E imediatamente me lembrei do João, que era ruivo e estudou comigo na quinta ou na sexta série (na época se dizia série e não ano) da Escola Estadual Adriano Jorge. Pois bem. O João, demais de ruivo (ou, pensando bem, galego) era silencioso e modesto como costumem ser as pessoas do interior. Silencioso e modesto, do tipo que sorri meio de lado, como que envergonhado, do tipo que fala olhando para baixo. O João, se pudesse, passaria despercebido. Que o deixassem quieto, esse era seu sonho. Mas os sonhos ou não se realizam ou nunca duram, esta é sua sina, e aconteceu que um dia a professora pediu ao João que fizesse uma leitura em voz alta para toda a classe. Já aí há complicação, sem dúvida. Esse negócio de se expor não é boa coisa. Mas o João começou bem a leitura, e eu notei que a professora balançava a cabeça para cima e para baixo, discretamente, num gesto de aprovação. E então o João se deparou com a palavra flor no meio do texto. Sem peias, sem duvidar de que estava fazendo o certo, disse: fror. A professora congelou e nós também, enquanto o João seguia adiante. Um momento, João, disse a professora. Leia a última frase, por favor. E o João leu a frase de novo e no meio dela disse novamente: fror. A professora não o deixou seguir adiante: É flor, João, flor. E ele, hesitante, como se não estivesse compreendendo: fror, fror. É flor, João, o certo é flor. E ele, como se se perguntasse o que estava fazendo de errado: fror, professora, fror. E nós caímos na gargalhada. Repita comigo, João: fu-lôr. E ele: fu-ror. E nós morríamos de rir. Não sabíamos então, nem a professora sabia (e quase ninguém sabe hoje), que as consoantes /l/ e /r/, chamadas de consoantes líquidas, são parentas próximas do ponto de vista articulatório. No imprescindível Preconceito linguístico: o que é, como se faz, Marcos Bagno explica que tal circunstância faz com que, “na história de muitas línguas [e na do nosso português] elas se substituam umas às outras indiferentemente”. O velho Camões, em seu Os Lusíadas, por exemplo, escrevia ingrês, frauta e pranta. Se a gente for procurar a etimologia destas palavras no Houaiss vai ver que frauta está certo, e pranta também, e também frecha, e uma porção de outras palavras. Mesmo o ingrês aparece lá, com a ressalva de que se trata de uma forma antiga. E a gente ria do João, e a professora tentava consertar sua pronúncia. Compreensível a atitude da professora: não se pode deixar que as crianças saiam por aí falando coisas “erradas”. O que me dá pena é que a gente não tenha podido compreender (e ainda hoje quase ninguém compreende, e muitos fazem questão de que não se compreenda) que o João, quando falava fror, estava apenas reproduzindo um padrão linguístico antigo, que seus pais, avós e bisavós também já vinham reproduzindo. Não estava errado, o João, que terminou concluindo a leitura aos trancos e barrancos. Os que ríamos dele não tínhamos como compreender que o pedaço de sociedade em que vivíamos era diferente do pedaço de sociedade em que ele vivia. Erroneamente julgávamo-nos superiores a ele e sentíamos pena de sua ignorância (que, a partir de então, o João tentou superar para poder ficar um pouquinho mais parecido com a gente). Mal sabia o João que era uma parte viva da nossa história linguística, e que também por isso (e não apenas por isso), merecia o nosso mais sincero respeito.

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