quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

TEMPOS BOBOS

A febre do politicamente correto (mais que a febre, a doença) é altamente contagiosa. A tal ponto que não considero improvável que daqui a dez, vinte anos já não possamos compreender o que é a vida social hoje – isto é, como falamos, como nos comportamos, como nos exprimimos. O nosso passado recente nos parecerá remoto e incompreensível, e não é difícil imaginar que os cidadãos desse paranóico mundo novo, irremediavelmente abobalhados pela contagiosíssima doença do politicamente correto, já não consigam pensar por si próprios e talvez tenham que se submeter, ai, a comitês totalitários, que avaliarão previamente o que é escrito, filmado, dito e tocado, a fim de declarar, em caráter definitivo, se aquilo é ou não é aceitável, se aquilo é ou não é ofensivo, digamos, à comunidade dos ciclopes, que deve haver uma. Digo isso a propósito de uma notícia que li por esses dias: o Ministério Público Federal protocolou ação na Justiça Federal para tirar de circulação (não sei se no Brasil inteiro ou se apenas em Minas Gerais, onde a ação foi proposta) o Dicionário Houaiss, que, ao contrário do Aurélio e do Michaelis (as editoras Globo e Melhoramentos, responsáveis pela publicação dos respectivos dicionários, atenderam à recomendação do Ministério Público Federal, como o leitor compreenderá) teima em manter entre as muitas definições do verbete “cigano”, a despeito de persuasivas advertências, expressões consideradas (segundo o Ministério Público Federal) pejorativas e preconceituosas: "que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador", etc. E não é suficiente para aplacar a sanha politicamente correta encampada pelo MPF que no dicionário se avise, através da abreviatura pej. (pejorativo) que aquele é apenas um dos muitos significados historicamente atribuídos à palavra (pois o Houaiss não os tirou do nada, nem o Aurélio nem o Michaelis, antes de capitularem). Também não é suficiente que a despeito destas expressões encontre-se no dicionário, como principal definição para a palavra, a histórico-geográfica: “relativo a ou indivíduo dos ciganos, povo itinerante que emigrou do Norte da Índia para o oeste (antiga Pérsia, Egito), de onde se espalhou pelos países do ocidente; calom, zíngaro”. Segundo o procurador responsável pela ação, “Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, […] fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação.” Caráter discriminatório? Assumido? Desde quando, me pergunto, os dicionários não podem mais registrar uma definição histórica, mesmo indicando que é pejorativa, apenas porque hoje se entende que ela é preconceituosa? Se não me engano, até agora (pode ser que daqui em diante não mais, a seguir-se o exemplo do Aurélio e do Michaelis) o papel dos dicionários, em todos os povos e em todas as épocas, tem sido o de registrar: nele se registra o que está em uso na língua. Não são os dicionários, que eu saiba, que definem, que escolhem, que criam os sentidos que devem compor um verbete. Não é suprimindo-se a expressão no dicionário (ou pelo menos não deve ser, pois dicionário não é lei) que se conseguirá fazer com que uma expressão deixe de ser usada. A doença do politicamente correto está de tal modo disseminada na nossa sociedade esquizofrênica, que hoje é preciso pensar não duas vezes, como se diz, mas três, ou quatro, ou cinco, e não apenas antes de falar, mas antes de escrever, antes de filmar, antes de tocar. É de meter medo tentar dizer qualquer coisa, por mais tola que seja, e chegará talvez um tempo em que será preciso antes consultar um dicionário de expressões politicamente incorretas (ou um comitê, como dito mais acima), antes de aventurar-se nessa perigosa empreitada que é emitir uma opinião, por qualquer meio que seja. Hoje, já se sabe, não se deve dizer negro, mas afro-descendente; não se deve dizer cego, mas deficiente visual. E por aí vai. Recentemente a Editora Globo mudou o nome do livro O Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie, como foi originalmente chamado no Reino Unido (Ten Little Nigers), para E não Sobrou Nenhum (And Then There Were None), como é chamado, timoratamente, nos Estados Unidos. Outro dia fez-se um escarcéu terrível a respeito de Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, porque no livro, segundo os especialistas, o autor usa “estereótipos raciais”. E acabo de ler que o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária - CONAR vai julgar suposta prática de racismo contida na propaganda da nova embalagem do azeite Galo, que diz “O nosso azeite é rico. O vidro escuro é o segurança”. “Escuro” e “segurança”, entenderam? As minorias agora, como que libertadas de um cárcere milenar, imposto por uma maioria desalmada, parecem sedentas de vingança e, vociferantes, cobram, exigem, mandam. Espanta-me que o MPF dedique-se com inusitado ardor – em prejuízo do trabalho sério, necessário, indispensável que lhe cabe institucionalmente desempenhar – a cuidar de picuinhas e de bobajadas, que mais parecem coisas de desocupados. Espanta-me também que pessoas cultas, ou assim ditas (a cultura nem sempre se faz acompanhar pelo bom-senso) defendam estes e outros disparates, como um de que eu mesmo fui testemunha: discutia-se se num projeto de regulamentação deveriam constar as expressões “diretor(a)”, “coordenador(a)”, etc., pois os defensores de tal despropósito acreditavam que manter a denominação do cargo apenas no masculino era uma afronta ao sexo feminino. (O pior é que os defensores da ideia estapafúrdia saíram vencedores, e o texto foi publicado assim, com esses antipáticos “(a)” depois de cada cargo. Se a ideia grassa, não é impossível que algum senador ou senadora, deputado ou deputada, apresente projeto de emenda à Constituição com o fim de corrigir a histórica opressão masculina, e que dentro em pouco estejamos lendo disparates como “Cada Senador(a) será eleito com dois suplentes”, ou “O número de Deputados(as) à Assembléia Legislativa corresponderá [...]”, etc.) Me parece que é péssima notícia, verdadeiramente reveladora dos tempos bobos em que vivemos, que tenhamos que discutir se é preciso ou não incluir numa obra literária, como no caso de Caçadas de Pedrinho, explicações (advertências, na verdade) para os alunos, dizendo-lhes que Monteiro Lobato vivia numa época em que era comum pensar que o negro, etc. etc., ou que tentemos suprimir de um dicionário de reconhecido valor expressões consagradas pelo uso (tenho até medo de usar a expressão “expressão consagrada” – perdoem-me a repetição –, pois posso ser acusado de dizer que todo mundo concorda com ela, o que não é verdadeiro), a pretexto de que tais expressões possam ser consideradas ofensivas ou preconceituosas, ou ainda que o CONAR, adiantando-se a algum eventual clamor da população negra, julgue se a propaganda do azeite Galo é ofensiva ao relacionar o emprego de segurança com a cor escura ou negra, insinuando com isso, maliciosamente, que apenas os negros foram talhados para o emprego (como se ser segurança fosse o pior castigo do mundo). Que precisemos discutir estes assuntos, e pior, que discordemos tanto ao discuti-los, é uma triste indicação de nossa superficialidade intelectual. São mesmo tempos bobos, estes em que vivemos.

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