domingo, 26 de fevereiro de 2012

O NOSSO McSORLEY'S

O Bar do Paulo tinha tudo para ser o nosso McSorley's. (Para quem não sabe, o McSorley's fica no East Village, na Sétima Rua – sim, na Sétima Rua e não na Sétima Avenida –, em Nova Iorque, e seu nome completo é McSorley's Old Ale House. O old aqui é bem verdadeiro: o McSorley's foi fundado em 1854, numa época em que se jogava serragem no chão para absorver, presumo, as cuspidas dos pinguços. Até hoje o McSorley's conserva a mesma cara, descontada a serragem, que tinha no século dezenove.) O Bar do Paulo, pois, que nem é tão antigo, bem poderia ter sido o nosso McSorley's, o McSorley's de Arapiraca. Mas como no Brasil (e mais acentuadamente em Alagoas) as coisas antigas são tratadas como trastes, como meros estorvos (ninguém as vê como tradições, como patrimônio), aconteceu com ele o que era de se esperar: foi ficando cada vez mais decadente, cada vez mais velho (utilizo a palavra “velho”, aqui, como sinônimo de mal cuidado) até, finalmente, fechar. Antes disso, nas duas últimas décadas, tinham sido realizados alguns eventos promocionais, nunca muito bem-sucedidos, com o objetivo de angariar fundos para fazer reformas no bar: seu Paulo, o proprietário, não era o empresário típico, desses que pensam números, de modo que costumava malbaratar seus minguados lucros não se sabe exatamente como, e nunca lhe sobrava dinheiro para fazê-las (as reformas) ele mesmo. Dia desses, porém, me disseram que tinham visto o bar aberto, e imediatamente imaginei lá dentro uns espectros cabisbaixos, movendo-se lentos sob luzes mortiças, melancolicamente embalados por alguma canção de Janes Joplin. Deve ter sido um engano, pensei, isso de terem visto o Bar do Paulo aberto. Eu mesmo tinha passado diante dele uma noite de sábado, não muito tempo atrás (as noites de sábado, por sinal, eram as melhores, as mais concorridas) e o vi como realmente está: fechado. A pintura da fachada, de uma cor indefinida, pálida, estava descascando; as portas, as pesadas portas de ferro, que recordo pintadas de branco ou amarelo, estavam enferrujadas. Dobrei a esquina, devagar (estava de carro), tentando vislumbrar através das janelas sujas algum movimento lá dentro. O Bar do Paulo, pelo que me consta, efetivamente morreu. Seu Paulo, que já era velho quando eu era criança, ainda vive, e espero, sinceramente, que esteja bem. Mas me disseram que anda triste, talvez depressivo. E não é para menos: seu Paulo foi o anfitrião feliz de pelo menos duas gerações, a dos meus pais e a minha. Testemunhou muita coisa: brigas inusitadas, conspirações políticas, altas traições, comemorações patéticas. Não me surpreende que agora, sem bar e sem fregueses, tenha sido tomado por uma nostálgica melancolia. Eu e meus amigos chegamos a ficar amigos do seu Paulo, que sempre nos recebia com um sorriso no rosto. Nos últimos anos, costumávamos nos lembrar de uma noite de véspera de Natal em que protagonizamos uma das madrugadas mais delirantes da história do bar. Sempre que conversávamos (não era raro que o seu Paulo sentasse à mesa conosco), lembrávamos daquela noite, que começou despretensiosa, sem cerveja (seu Paulo não imaginava que a madrugada do dia 25 de dezembro pudesse ser promissora), e se estendeu até o raiar do dia, com grande vozerio e barulho de risos (do nada apareceram cervejas e Montilas, que prontamente cumpriram seu papel), assustando até mesmo os mais empedernidos bebedores (conta-se que dois pinguços, passando na frente do bar numa hora em que o céu já começava a se tingir de cinza, cogitaram de juntar-se à farra. Quem os viu conta que um falou para o outro: “Vamos entrar?”. E o outro teria respondido, vivamente horrorizado: “Você está louco? Isso aí é barra pesada!”) Numa das últimas vezes em que visitei o bar, lá se vão uns seis ou sete anos, seu Paulo falou mais uma vez daquela noite, e desta vez com lágrimas nos olhos (vi as lágrimas, juro). Perguntou das fotos (alguém, do nada, tinha aparecido com uma câmera) e queixou-se de que ninguém tivesse dado a ele, como lhe fora prometido, a foto daquela noite: aquela em que posamos todos, quinze ou vinte pessoas, o seu Paulo incluído, como um time de futebol, nos fundos do bar. Eu mesmo creio que nunca vi a foto revelada, e duvido que se a visse não tivesse ficado demasiado saudoso do que fomos, daquela época e do próprio bar, o nosso McSorley's.  

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