quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

VIDA ENVENENADA

A notícia de que na cracolândia que começou a ser desbaratada no dia 3 de janeiro deste ano, em São Paulo, havia cerca de 20 grávidas, tem componentes de horror (pelo menos a mim me deixou de cabelos em pé) suficientes para perturbar, ainda que por breves minutos (hoje ninguém dispõe de mais de cinco minutos para o que quer que seja), qualquer um que tenha um mínimo de conhecimento sobre gravidez e vida fetal. Tantos são os cuidados, as cautelas e prevenções que se adotam em relação às gestantes (mais especificamente em relação aos fetos das gestantes), tão delicado e frágil é o período de gravidez, que é surpreendente saber que existem mães que gestem filhos à margem de tais cautelas, cuidados e prevenções, e que não saibam, ou não suspeitem, dos malefícios de determinados alimentos, de determinadas drogas e de determinados produtos, sobre si mesmas e sobre seus filhos. Essas mães comem o que lhes dá na telha, bebem álcool se têm sede e fumam se lhes apetece. Mas, com toda a porralouquice que é sua vida gestacional, estas mães (me refiro, repito, às mães que não resistem às tentações: às que consomem álcool com certa regularidade, às que fumam por puro prazer hedonístico, às que se entregam a orgias esporádicas de comidas gordurosas) são exemplos de bom comportamento alimentar se comparadas com as desvalidas e alienadas gestantes encontradas na cracolândia. As recomendações médicas às grávidas normais, então, chegam a ser risíveis se contrastadas com o estilo de vida, se é que se pode falar em estilo e em vida, das gestantes viciadas em crack: evite os refrigerantes e os adoçantes artificiais; evite, claro, o álcool; se ficar gripada, nada de remédios: no máximo uma vitaminazinha c e olhe lá; se tiver dor de cabeça, paracetamol e vê lá, hein?, não abuse; e, se tiver enxaqueca, minha filha, reze. Se todos os cuidados, cautelas e prevenções têm por objetivo evitar danos ao feto, é de arrepiar os cabelos saber o que padecem os fetos das grávidas que consomem crack. Segundo estudos, os bebês destas mulheres tendem a nascer prematuros e com atraso de desenvolvimento. Se isso, por si só, já não fosse grave, outros infortúnios, para mim até há pouco inimagináveis, aguardam estas crianças. Quem não tem coração de pedra e já viu um bebê normal chorando sabe o quanto é penoso tentar cuidar daquele serzinho desprotegido, sem saber ao certo se ele tem fome ou refluxo, cólica ou gases. Que se dirá, então, do bebê de uma mãe viciada em crack? O parto prematuro, nesse contexto, pareceria uma bênção: pelo menos o bebê seria poupado do veneno na veia, literalmente. (Como seria alimentação do bebê, porém? Terá leite a mãe viciada? Dará o peito ao bebê a mãe viciada? E qual será a qualidade desse leite? São perguntas perturbadoras.) Como eu disse, não bastassem estes problemas, o bebê de uma mãe viciada em crack padece ainda de síndrome de abstinência: tem taquicardia e tremores, sua em bicas e chora intensamente, e só se acalma sob sedação. Se parte o coração às pessoas normais o choro de cólica do bebê, por exemplo, que se dirá do tremor, da agitação, do desespero – esta é a palavra –, do desespero sem sossego do bebê viciado? Bastasse tal vislumbre de sofrimento para que o poder público implantasse uma política mais rigorosa de combate às drogas. Bastasse reconhecer a dor sem palavras, sem expressão, para o que o poder público movesse mundos e fundos para resgatar cada uma dessas mães. Dizer que a criança, especialmente o bebê, é um ser indefeso, é lugar comum. Mas nesse caso o lugar comum precisa ser dito e repetido até a exaustão. Se o adulto ou adolescente podem, em maior ou menor grau, exercer uma escolha quanto ao que vão consumir, o recém-nascido não tem como correr, não tem como dar as costas, não tem como tapar o nariz, não tem como fechar a boca. Indefeso dentro do útero, onde deveria estar mais protegido, não pode rejeitar o veneno que a mãe ingere e que os mata (a ele e à mãe) aos poucos. E se ele, bebê, por felicidade ou infelicidade, resiste à primeira infância, e à segunda, e se vinga, como diziam os antigos, que será de sua vida, desde o útero maltratada, desde o útero envenenada?

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