quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

UMA TARDE DE DOMINGO

Depois, muito tempo depois que o Dez sumiu, julguei tê-lo visto (bem poderia ser ele) uma tarde de domingo, quando da janela do meu quarto observava a solitária calçada do outro lado da rua. De uma casa mais à esquerda, fora do meu campo de visão, vinha uma música estridente e incômoda: uma festa, dessas que desbordam na rua, como era comum à época. Eu já me dispunha a deixar a janela e me refugiar lá atrás, talvez no quintal, quando ele surgiu à minha direita. Vinha devagar, ligeiramente trôpego, coberto com uma capa com capuz (será que imagino?) que lhe dava um aspecto de frade franciscano. Apoiava-se (a memória é brincalhona e prega peças: pode ser que não usasse nenhuma das indumentárias de que agora me lembro) numa vara, uma espécie de cajado improvisado – provavelmente um cabo de vassoura. Pois bem. Vinha assim, vestido como um franciscano, apoiando-se em seu cajado, quando, de repente, atentou para a música. No mesmo instante parou e levantou um braço. Abrindo a boca sem dentes num sorriso espontâneo (julgo ter podido ver o oco escuro de sua boca), começou a dançar com passo trôpego. Alguém na festa deve tê-lo notado, pois ouvi risos e incentivos. Apoiado à janela, vendo-o dançar, imaginei como seria sua vida: não tinha família, claro, ou, se tinha tido (podia ser que nunca tivesse conhecido um irmão, uma mãe, um pai), já não guardava mais memória dela. Seus dias provavelmente eram um grande vazio – de amigos, de parentes, de expectativas. De que teor seriam suas alegrias, se as tinha? Seriam breves, efêmeras alegrias de tardes de domingo? Dançou por mais uns minutos, sorrindo, incentivado pelos risos da plateia improvisada, até que se cansou e baixou o braço e deixou de sorrir, e voltou a apoiar-se de vez no cajado. Súbito, pareceu consciente de sua verdadeira condição, e voltou-se para o lado de onde tinha vindo. Pareceu pensar no que fazer, e então decidiu-se: afastou-se sem pressa, curvado como antes. Os rapazes da festa (eu podia ouvir várias vozes masculinas) mal prestaram atenção à sua saída, pois não se manifestaram. Lentamente, ele foi sumindo do meu campo de visão, deixando atrás de si a calçada vazia, a tarde suspensa, o domingo melancólico.

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