sábado, 24 de dezembro de 2011

NOITE DE NATAL

Eu estava a esta mesma janela quando o vi sair pela manhã. Ia parcialmente paramentado: botas pretas impecáveis, calças vermelhas de cetim. Às costas levava o saco no qual certamente guardava o resto da indumentária: a casaca, o cinto, a barba postiça, o gorro, as luvas. Sumiu rápido, dobrando a esquina. Agora, olhando a rua enquanto lavo os pratos (meus convidados já foram embora e minha esposa e meu filho já foram dormir) vejo-o chegar pela mesma esquina. Vem quase do mesmo jeito: sem gorro e sem barba, o saco às costas; está usando a casaca vermelha, porém. Quanto às botas, me pergunto se estão limpas. Sobe os três degraus que levam à porta de sua casa e coloca o saco no chão enquanto procura a chave no bolso. Abre a porta e, parado à soleira, liga a luz da sala. Dá dois passos para dentro, deixa cair o saco no chão e fecha a porta. Pela janela iluminada posso ver um pedaço da sala: um quadro pendurado à parede, um tampo de mesa. Ele para diante da janela e tira a casaca. Parece hesitar, como se não soubesse o que fazer. Some, depois volta. Então vem de novo até a janela e a abre. E me vê. Tenho a estranha sensação de que fui surpreendido fazendo algo errado ou, mais estranhamente, de que fui surpreendido testemunhando um crime. Sinto-me como um L.B. Jeffries, de Janela Indiscreta. No filme, Jeffries suspeita que o cara do outro lado da rua deu um fim na esposa. Nessa história, porém, o cara do outro lado da rua, meu vizinho com quem nunca falei, não poderia fazer nada parecido. Que eu saiba, não tem esposa, nem filhos. Nunca vi ninguém minimamente assemelhado a um parente entrar em sua casa. Talvez eu deva convidá-lo para vir aqui, beber o resto do vinho comigo. Poderíamos sentar nos degraus, sob o alpendre, ao lado do canteiro de flores que minha esposa rega todos os dias. Enquanto penso nisso, ele fecha a janela e apaga a luz, e a luz se apaga. 

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