sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A LAGOA DAS OLARIAS

Se tinha um lugar por onde o fim do mundo podia começar era pela Lagoa das Olarias. Mas não era bem o fim do mundo que me preocupava (não o fim do mundo como conceito): o que me preocupava era o fim de Arapiraca, que podia começar ali, aos meus pés. A Lagoa das Olarias, santo Deus, podia engolir a cidade inteira e, por consequência, o mundo – o meu mundo e tudo o que eu conhecia. Quanto ao mundo real, bem, minha cabeça de criança ainda não atribuía tanta importância a ele. O mundo real era uma coisa informe e meio abstrata – palavras estranhas aprendidas em livros de História e Geografia. De modo que, se Arapiraca se afundasse na Lagoa das Olarias (na época eu sequer sabia que era esse seu nome), o mundo inteiro se acabaria. Mas pior que isso, pior que esta possibilidade, era enfrentar o monstro sem lança e escudo, como eu fazia todo domingo. Todo domingo, às dezoito e cinquenta, meus pais insistiam em atravessar a ponte do Alto do Cruzeiro, que se estendia sobre a temida lagoa, para assistir à missa das sete, na igreja do mesmo nome. E, claro, me levavam junto. Creio que nunca contei a eles do meu medo (algum vago pudor me impedia, algum vago prurido masculino: homem não pode ter medo, parece). Não me recordo bem, mas acho que perguntava, como se fosse simples curiosidade, o que eram aquelas coisas boiando sobre a lagoa, aquelas folhas verdes misteriosas, ondulantes, vivas (talvez viesse daí o meu medo). Estou quase certo de que eles me explicavam que aquelas coisas eram simples plantas aquáticas. Não adiantava muito. Se ao menos elas não cobrissem a lagoa inteira, dando-lhe aquele aspecto misterioso... Das outras lagoas, das lagoas normais, eu não tinha medo algum. Atravessávamos pois a ponte (eu me lembro da calçada irregular, cheia de inquietantes rachaduras) e seguíamos em direção à igreja, onde eu assistia aos primeiros minutos de missa ainda meio esbaforido. E, depois da missa, claro, tinha a volta. Não havia caminho alternativo: tínhamos que voltar pela ponte, que ligava a parte baixa à parte alta da cidade. De alguma forma, porém, a volta era menos inquietante. Talvez porque fosse a segunda metade da jornada, talvez porque fosse, afinal, a volta para casa, que é sempre um abrigo. Pensando bem, também havia ameaças em casa: o Fantástico, por exemplo, não era uma revista eletrônica semanal, como hoje se autointitula. Na época, o Fantástico era um programa coalhado de ameaças. Era a época da guerra fria, e vai-não-vem eu assistia, a medo, reportagens alarmantes sobre a iminência de uma guerra nuclear. E se as bombas atômicas impedissem as minhas inocentes peladinhas de rua? É dura a vida das crianças. Mas a Lagoa das Olarias era uma ameaça mais concreta. Estava ali pertinho, a alguns passos da minha casa. Com o tempo a lagoa foi domada, por assim dizer: de pântano assustador, cheio de sapos, grilos e sons estranhos, virou um córrego mirrado e fedorento, cheio de dejetos. Passaram-se mais alguns anos e suas margens foram diminuindo gradativamente, até virarem um aterro e depois um parque. Hoje, quando passo pela ponte (que, a bem da verdade, não é mais ponte), mal me lembro da ameaça. De dia, a luz do sol, seca e implacável, ilumina as árvores, os bancos, a grama; à noite, dezenas de postes emprestam sua luz amarela ao ócio dos que vão gozar a brisa. É uma infância sem graça, a dos meninos de hoje! Não há bicho papão que os aterrorize. E os meninos de Arapiraca, pobres coitados, não têm mais um lugar de medo como eu tinha, um lugar que me fazia querer voltar para casa o mais rápido possível. Em casa, sob a barra da saia da minha mãe, agarrado às dobras da calça do meu pai, eu imaginava que o mundo talvez tivesse alguma esperança de salvação.

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